“Eu sou o presidente”: os ditos, os não-ditos e os re-ditos na política de estado brasileira em tempos de pandemia

Verli Petri

Universidade Federal de Santa Maria
verli.petri72@gmail.com

Maria Cleci Venturini

Universidade Estadual do Centro-Oeste
mariacleciventurini@gmail.com

Trabajo recibido el 23 de agosto de 2020 y aprobado el 15 de marzo de 2021.

Resumo

A crise sanitária, política e econômica decorrente do COVID-19 deu visibilidade às contradições que permeiam o discurso político e as relações entre sujeitos, os quais nem mesmo diante de uma pandemia conseguem deixar em segundo plano a luta por lugares de poder e de fala. Nosso objetivo é explicitar os processos de produção de sentidos que constituem o discurso do presidente da República, em tempos de pandemia, num espaço de litígio, nos embates com o discurso produzido pelo ministro da Saúde, em março e abril de 2020, a partir do que circulou nas mídias digitais. Trata-se do desafio de analisar o discurso no tempo presente, assumindo os riscos que esta empreitada carrega em si mesma. Diante deste presente em que os sujeitos, em seus discursos, se contradizem/se mostram/se escondem, sinalizando para o retorno do mesmo em ditos, não-ditos e re-ditos, identificamos, pela mobilização do dispositivo teórico-metodológico da Análise de Discurso Pecheuxtiana, que a inscrição dos sujeitos prioritariamente na mesma formação discursiva não garante o sucesso da coalisão. De fato, as análises demonstram que eles militam em posições distintas, um assumindo a defesa do isolamento vertical e outro do isolamento horizontal, promovendo a contradição, o antagonismo insustentável, a ruptura.

Palavras-chave: discurso político; memória; história; tomada de posição-sujeito; pandemia.

“Yo soy el presidente”: los dichos, los no dichos y redichos en la política estatal brasileña en tiempos de Pandemia

Resumen

La crisis sanitaria, política y económica resultante del COVID-19 ha dado visibilidad a las contradicciones que permean el discurso político y las relaciones entre los sujetos, a los cuales ni siquiera ante la pandemia logran echar en segundo plano la lucha por sus lugares de poder y de habla. Nuestro objetivo es hacer explícitos los procesos de producción de sentidos que constituyen el discurso del presidente de la República, en tiempos de pandemia, en espacio de litigio, en los enfrentamientos con el discurso producido por el Ministro de la Salud, en marzo y abril de 2020, a partir de lo que ha circulado en los medios digitales. Se trata del desafío de analizar el discurso en tiempo presente, asumiendo los riesgos que este esfuerzo conlleva en sí mismo. Ante este presente, en el que los sujetos, en sus discursos, se contradicen/ se muestran/ se ocultan, señalando para el regreso del mismo en los dichos, en los no dichos y en los redichos, identificamos, por medio de la movilización del dispositivo teórico-metodológico del Análisis de Discurso de Pêcheux, que la inscripción de los sujetos de forma prioritaria en la misma formación discursiva no garantiza el éxito de la coalición. En efecto, los análisis demuestran que ellos militan en posiciones distintas, uno asumiendo la defensa del aislamiento vertical y el otro el aislamiento horizontal, promoviendo la contradicción, el antagonismo insostenible, la ruptura.

Palabras-clave: discurso político; memoria; historia; toma de posición-sujeto; pandemia.

“I am the president”: the saying, the unspoken and the re-spoken in Brazilian State politics in times of pandemic

Abstract

The sanitation, political and economic crisis resulting from COVID-19 have given visibility to the contradictions that permeate the political discourse and the relations between subjects, which, even in the face of an pandemic, cannot leave the struggle for places of power and speech behind. Our objective is to make explicit the processes of production of meanings that constitute the speech of the president of the Country, in times of pandemic, in a space of dispute in the clashes with the speech produced by the Health Minister, in March and April 2020, from what circulated in digital media. It is the challenge of analyzing the discourse at the present, assuming the risks that this endeavor carries itself. In view of this present time, we identify, through the mobilization of the theoretical-methodological device of the Analysis of Pecheuxtiana Discourse, that the registration of the subjects as a priority in the same discursive formation does not guarantee the coalition success. The subjects, in their speeches, contradict each other / show / hide themselves, signaling for the return of itself in sayings, unspoken and re-spoken. In fact, the analysis show that they militate in different positions, one defending the vertical social distancing and the other the horizontal social distancing, promoting contradiction, unsustainable antagonism, the rupture.

Key-words: political discourse; memory; history; subject-position taking; pandemic.

1. Palavras iniciais

[...] os sentidos não se fecham, não são evidentes, embora pareçam ser. Além disso, eles sempre jogam com a ausência, com os sentidos do não-sentido
(Orlandi 2004, 9).

Vamos lá, em política, quando a gente fala ‘não existe’, a pessoa já fala ‘existe’ (Mandetta, 30/3/2020).

As epígrafes acima dão visibilidade ao nosso gesto de interpretação, diante da crise sanitária, política e econômica desencadeada pela COVID-19, vírus que assola o planeta. Os dizeres das epígrafes —um teórico e outro não— são efetivamente políticos. Tal característica nos interessa, sobretudo, quando posta em relação com o discurso que circula na mídia.

Pensar nessa tragédia que nos assola traz à baila tudo o que sabemos sobre tragédias universais conhecidas pela humanidade, sejam elas históricas ou míticas. Há um espaço consolidado de tragédias e elas se repetem. Dizer pandemia também nos remete a tudo o que se sabe sobre as pandemias que o mundo já viveu, desde as pragas da Antiguidade até a pandemia da gripe espanhola vivida no início do século XX. Há repetições, mas nesse caso não se trata de uma repetição simples como uma litania, um ritual automatizado, com uma certa previsibilidade; trata-se de uma repetição que se inscreve na história produzindo “ressonâncias”. Guasso (2020, 172) explicita essa diferença entre a repetição e a repetição historicamente constituída, na qual se realizam “vibrações semânticas”, pois para a autora: “o princípio da repetição não se sustenta na história, já as ‘ressonâncias discursivas’1 sim, porque elas retomam outro(s) discurso(s)”. Nos perguntamos também: o que se repete, o que ressoa nesses tempos pandêmicos?

Susan Sontag, ao refletir sobre “A doença como metáfora” (meio século antes da chegada da pandemia do COVID-19), explicitava a força do uso político da doença que se fez através dos tempos, e asseverava que “o conceito de doença nunca é inocente” (1984, 104). Esse é um ponto crucial da nossa proposta de trabalho: compreender como a ideologia funciona na produção dos discursos, dos sujeitos e dos sentidos durante a pandemia do COVID-19 no Brasil, no início de 2020.

O Brasil do ano de 2020 é assolado pela pandemia do COVID-19.2 Tal acontecimento instala imediatamente uma crise na saúde pública e parece estar ela mesma permeada de contradições, haja vista que no momento em que a saúde deveria estar em primeiro plano, ressoam ecos da luta pela manutenção ou pela busca de lugares de poder. A pressão ideológica se sobrepõe à luta pela vida, sem estabelecer fronteiras entre o que pode e o que não se pode fazer/dizer.

Pensadores de diferentes áreas da produção do conhecimento passam a produzir reflexões sobre essa temática. Harari (2020, 42), em meados de março, já anunciava a necessidade do que ele denominou como “plano global” de enfrentamento à pandemia do coronavírus, fazendo uma crítica aos governantes que pareciam anestesiados ou em suas palavras: “uma paralisia coletiva se apossou da comunidade internacional. Parece não haver adultos na sala”. Já na reflexão de Zizek (2020), em obra coletiva sob a coordenação de Mike Davis (2020), passa-se a indicar as possíveis mudanças que tal acontecimento provocará na sociedade de consumo capitalista, explicitando as fragilidades próprias à luta de classes nesse início de século.

Em termos de Brasil não foi diferente. Muitos pesquisadores têm se dedicado a refletir sobre a pandemia que se abate sobre nós. Barbosa (2020, 1, grifo da autora), vinculada ao departamento de Medicina da UFJF, produz um forte editorial para discutir as estratégias de atenção primária à saúde no Brasil. Ela ressalta, ainda no início de 2020, a importância do SUS3 e já expõe a mudança de posicionamento de muitos em relação a esse sistema, afinal:

No que tange o nosso Sistema Único de Saúde (SUS) por vezes questionado, discriminado, repreendido, passou nos tempos de hoje a ter defensores de todas as partes e formas. De fato o público se tornou do povo, e se fez valer pelo seu real valor “o de proteger a saúde da população”, no nosso caso, a do Brasil.

Já da perspectiva da Análise de Discurso temos produzido estudos que dão a dimensão social e discursiva da pandemia, o que está tão bem apresentado nas palavras de Bocchi (2020, 22), quando afirma que:

No Brasil, não é difícil perceber os efeitos díspares e dissimétricos que a disseminação do Coronavírus impõe aos moradores de favelas e comunidades periféricas, muitas vezes sem as mínimas condições de saneamento, às pessoas expostas a uma precarização cada vez mais intensa do trabalho e perda de direitos trabalhistas.

Tais estudiosos mostram, em suas reflexões, que a história se repete, que ressoam sentidos e que o povo em geral é sempre o mais atingido; assim acontece com as tragédias, as calamidades, as pandemias. A repetição da tragédia social, vale destacar, reiteradamente, atinge em cheio os menos favorecidos, pertencentes às classes sociais “dominadas”, desprovidas de capital. Há que se destacar: tudo isso está acontecendo em resposta ao descaso dos governantes, em esfera mundial, com áreas sociais prioritárias, tais como a produção científica e a saúde pública. A situação é resultado da falta de políticas públicas, negligenciadas na maioria das reformas sociais, promovendo o caos social em países considerados ricos, atingindo aqueles já reconhecidos como pobres, e aniquilando com os miseráveis.

É bem possível que depois dessa pandemia ocorram mudanças nas relações e nas práticas sociais, nas formas de trabalho e até no que se refere ao “ser” e, principalmente, ao “ter”. Zizek (2020, 43) destaca que a disseminação contínua da epidemia do Coronavírus desencadeou “vastas epidemias de vírus ideológicos que ficaram adormecidos em nossas sociedades: falsas teorias da conspiração paranoicas, explosões de racismo, etc.”. A necessidade de quarentena/distanciamento social circulou como um discurso ancorado na ciência e nos protocolos médicos, mas desnudou a contradição e a luta entre as instâncias da saúde, da economia e do político, instaurando o embate e a disputa em outra ordem.

No ímpeto de propor uma reflexão sobre o tempo presente, seguindo a esteira de intelectuais filiados a diferentes áreas do conhecimento, nos inscrevemos como analistas do discurso e nos ocupamos dos modos de discursivização da crise que assola o mundo e a provisoriedade dos sentidos, o jogo discursivo em torno da ausência de sentidos e a possibilidade de não-sentidos. Tal movimento nos interpela e nos distancia do que seria “a exigida neutralidade”. Estamos dentro da crise e ela está dentro de nós. Somos afetados e afetamos esse acontecimento, que ainda está por significar,4 por sermos sujeitos (do e no tempo presente) e, como tais, estarmos “condenados a interpretar” (Orlandi 2004, 09). Como sujeitos, mesmo estando na posição-sujeito de analistas, somos interpelados pela ideologia e atravessados pelo inconsciente. Assim, vivendo a realidade social brasileira, colocamo-nos diante das práticas sociais que dão visibilidade ou apagam o político e a política,5 minimizando as relações de força em jogo, em diferentes materialidades significantes, publicadas nas mídias digitais.

Nossa proposta, neste artigo, é explicitar os processos de produção de sentidos (paráfrase, metáfora, etc.) que constituem o discurso em circulação durante a pandemia da COVID-19, em torno das relações de poder que envolvem o ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta, e o presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, seus seguidores e seus opositores, na cobertura de imprensa realizada pela mídia digital. Os recortes são realizados a partir de materialidades que circularam nos meses de março e abril de 2020.

Nosso foco são sequências discursivas destacadas de textos disponíveis em veículos da mídia digital brasileira, nos quais ressoam discursos e neles/por eles memórias, fazendo sentido em suas relações com a exterioridade, acreditando que “as relações entre história e memória talvez sejam a possibilidade mais profícua de caminhar na direção de diferentes práticas sociais” (Petri 2017, 80).

2. Das condições de produção e dos dispositivos teórico-metodológicos: uma proposta de análise

A arte de anestesiar as resistências, de absorver as revoltas no consenso e de fazer abortar as revoluções fez certamente grandes progressos. Mas tudo isto não deixa de trabalhar menos sob o assujeitamento: é antes a capacidade de ouvi-lo que persiste em fazer falta politicamente (Pêcheux 2011, 92).

Enunciados curtos, quase palavras de ordem, revelam/escondem/escancaram divisões e contradições. Uma das bases para discutir as contradições desse discurso é Pêcheux (2011), com o texto Foi ‘propaganda’ mesmo que você disse?, no qual o autor parte do termo “guerra ideológica”para discutir sobre as operações midiáticas de massas. Para isso, faz uma retomada histórica, a fim de enfocar e discutir a eficácia da propaganda, mostrando o seu funcionamento em sociedades capitalistas, como os Estados Unidos —via “dita americana”— e em sociedades que apagaram o Estado de Direito, como na Europa, e que implantaram com sucesso as políticas totalitárias —via “dita prussiana”. As discussões de Pêcheux (2011) alicerçam-se na relação da propaganda com o capitalismo, destacando o fato de o homem ser influenciável. Disso tudo, podemos depreender que se existe uma verdade, ela se constrói por palavras que, ao serem repetidas, funcionam como inculcadoras de alguns saberes em detrimento de outros e acabam saturando discursos, produzindo o que preferimos designar como “efeitos de verdade”.

Zandwais (2019), a partir de uma leitura de Pêcheux (2011), sublinha a eficácia da propaganda e exemplifica o modo como governos totalitários chegaram ao poder e lá se mantiveram por meio dessas práticas. Entre os exemplos citados está Hitler e a obra Mein Kampf,6 em que o nazista afirma que o povo tem pouca capacidade de reter/entender enunciados mais longos e elaborados, advindo daí a eficácia de frases feitas e curtas, passíveis de serem lembradas e de constituírem-seem palavras de ordem. Diante do já-dito, as questões que nos movem são: quais mecanismos discursivos constituem efeitos de que o que é dito está atravessado por não-ditos? Qual o papel da memória e de discursos que circularam antes (em outros lugares) e que vêm funcionar na interpretação de acontecimentos da atualidade? Como os modos de dizer produzem efeitos nos modos de interpretar das grandes massas?

Se, como diz Orlandi (2004), a interpretação é constitutiva do sujeito e se todo discurso demanda interpretação, não é menos verdadeiro que sempre é relevante falar do acontecimento histórico que suscita a discursivização, dando a conhecer as condições de produção do discurso, em duas instâncias: a estrita e a sócio-histórica (Orlandi 2002).

A primeira instância recobre o discurso em sua circulação, a partir do sujeito, em uma formação social, juntamente com as implicações do acontecimento em sua temporalidade e no intradiscurso (formulação). Nessa primeira instância, o discurso atende às demandas da formação social e à urgência da instauração de “efeitos de sentidos entre interlocutores” (Orlandi, 2002), diante de acontecimentos que fazem sentido e significam na formação social, posto que “a interpretação não é de todo livre” (Venturini, 2012:1045).

Já a segunda instância —a sócio-histórica— traz para a ordem do discurso o que circulou antes em outro lugar, como pré-construído, e que ressoa como evidente no discurso, enquanto uma presença-ausente ou como um já-dito não explicitado que ‘grita’, incomoda/desacomoda, desmanchando evidências. É, pois,quando os não-ditos soam no fio do discurso. No que refere ao caso do coronavírus, destacamos que o histórico de pandemias/epidemias (gripe espanhola, ebola, gripe suína, entre outras) ajudam a significar e a dimensionar a crise. O início da pandemia e o modo como foi/tem sido tratada faz parte das condições de produção, e é a partir do cenário passado que os cientistas discutem as diretrizes de enfrentamento da pandemia. Os governantes, por sua vez, tomam posições para administrarem a crise desencadeada pela pandemia, e o que se observa são oposições e contradições. De um lado, há uma certa aceitação do que a ciência apresenta, tal como podemos observar em países como Argentina, Itália, Israel (para citar alguns).De outro lado, os negacionistas, tais como os governos do Brasil, México, Suécia, que preferem não ouvir os cientistas. Além das oposições, identificamos também as contradições, posto que há governantes de direita e de esquerda dos dois lados da questão. Mas isso seria um tema para outro estudo.

2.1. Preparando as análises

O enfrentamento do acontecimento histórico designado como COVID-19 e o que circulou a partir dele (nos meses de março e abril de 2020), na seara do político e da política, no Brasil, são o fio condutor de nossas discussões. Embarcamos com Orlandi (2019, 150) “[n] a aventura da busca de possibilidades analíticas”, pois entendemos que houve a criação de uma gama de narratividades que encaminha para diferentes interpretações e posicionamentos, promovendo efeitos contraditórios que oscilam entre o conhecimento e o desconhecimento, o que dificulta muito as análises. Para determinar o âmbito de nossas reflexões, centraremos na produção discursiva de duas figuras públicas que consideramos como protagonistas: o presidente do Brasil e o ministro da Saúde.

Vemos, nesses dois protagonismos, uma contradição que se destaca, entre outras que também funcionam nesse discurso, qual seja: embora eles façam parte de um mesmo governo e inscrevam-se, prioritariamente, em uma mesma formação discursiva, é possível identificar que há diferentes tomadas de posição do sujeito frente às demandas da crise, o que explicita, em ordem crescente, as contradições do e no discurso de cada um. As condições de produção, como assinalamos há pouco,mostram que se trata de políticos de um mesmo governo, a saber, o de Jair Bolsonaro —vitorioso nas eleições de 2018. No entanto, esse fato não garante a manutenção das alianças em tempos de crise, quando os saberes advindos de outras FDs se atravessam e produzem sentidos no discurso de um e de outro.

Jair Messias Bolsonaro inscreve-se na formação discursiva militar, mas ressoam ainda saberes que vêm de outros lugares e domínios, sobressaindo-se o religioso, o que constitui evidências de homogeneidade e de saturação em seu discurso e nas práticas sociais que lhe são próprias. É um capitão reformado que foi deputado federal por sete mandatos, entre 1991 e 2018. A sua eleição, para estes sete mandatos, ocorreu pela filiação a diferentes partidos políticos, todos com tendência de direita ou de extrema direita. Elegeu-se presidente da República pelo Partido Social Liberal (PSL), com o slogan “Um novo rumo para o Brasil”,7 defendendo a austeridade econômica e uma atenção bem especial às classes sociais mais abastadas. Além disso, ataca sistematicamente a esquerda, em uma campanha tomada por Fake News.

Atualmente, é um presidente da República sem partido. Ademais, trata-se de um político que não se pautou no debate presencial, pouco fez campanha nas ruas, detendo-se no âmbito das redes sociais, ratificando o que Pêcheux já anunciava ao final dos anos 1970: “O Estado capitalista moderno passou a ser mestre na arte de agir à distância sobre as massas. É esta toda a arte da propaganda, e esta arte (arma) não poderia virar-se, como tal, a serviço do proletariado e das massas” (2011: 91). Uma das contradições observáveis nas práticas sociais e discursivas desse político é o modo de falar e de se posicionar que, tantas vezes, se opõe ao que seria próprio da governança.

Se, por um lado, não saiu às ruas em campanha eleitoral, por outro lado, em tempos de distanciamento social, já eleito, insiste em estar na rua e manter contato físico com os grupos que o seguem. Ao sair do Palácio, invariavelmente busca o corpo-a-corpo com seus asseclas, gente “do povo” que ele considera seus aliados, falando a eles de e sobre o seu governo, simplificando, ao máximo, questões de alta complexidade jurídica, econômica e social. Isso ocorre de forma mais contundente em feriados e finais de semana, quando se coloca sistematicamente contra a imprensa, transferindo responsabilidades de governo para as mídias em geral. Observa-se que, durante a pandemia do coronavírus, tais práticas se fortaleceram e o presidente da República insiste em contrapor-se ao que determina a OMS (Organização Mundial da Saúde)8 e, consequentemente, ao que determinava o ministro da Saúde, escolhido por ele mesmo, Luiz Henrique Mandetta.9

O ministro da Saúde, nomeado por Bolsonaro, é do Estado do Mato Grosso do Sul e pertence a uma família abastada, historicamente participante da política brasileira. É médico formado pela Universidade de Gama Filho (Rio de Janeiro, RJ – 1989) e possui pós-graduação em Ortopedia pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Especializou-se em Ortopedia Pediátrica pelo Scottish Rite Hospital for Children, em Atlanta, nos Estados Unidos (Atlanta, Georgia). Além disso, possui especialização em Gestão de Serviços e Sistema de Saúde pela Fundação Getúlio Vargas.10

É impressionante como o discurso produzido por Mandetta, diariamente ao final de cada jornada de trabalho no combate à pandemia —em coletiva de imprensa—, conquista aliados em todos os partidos políticos, em todas as classes sociais, nacional e internacionalmente. Seu discurso é tão potente —alicerçado na defesa do SUS, na posição de médico e na confiança na ciência—, que se produz um apagamento de suas posições políticas anteriores, dentre as quais destacamos a sua participação na campanha pela dissolução do Sistema Único de Saúde (agora aclamado por todos), e pela destituição do poder de Dilma Rousseff (já inocentada pela História), conforme ilustra a fotografia11 recortada e postada novamente nas redes sociais em 2020:

Figura 1. Repostagem, por Haddad Debochado, do tweet repercutindo o impeachment de Dilma Roussef, 4 anos depois, quando Mandetta é destituído do seu cargo junto ao governo Bolsonaro.

Coincidência ou não, é justamente no dia 16 de abril, quatro anos depois, que Mandetta será destituído do seu cargo junto ao governo Bolsonaro.

De fato, as condições sócio-históricas explicitam que presidente e ministro defendem teses capitalistas, priorizando as classes mais abastadas economicamente. A manchete publicada no dia 05 de abril, pelo Jornal El País, diz que Mandetta é “o conservador que vestiu o colete do SUS e entrincheirou Bolsonaro”.12 Além disso, mostra a contradição como característica marcante no discurso de Mandetta, ex-deputado conservador, opositor do Programa “Mais Médicos” e executivo de plano de saúde. Enquanto deputado federal do Mato Grosso do Sul, ele votou favorável ao golpe contra a Dilma, colocando-se contra a esquerda. Essa mesma esquerda posta a hashtag #ficaMandetta, prevendo que a contradição poderia chegar a níveis insustentáveis e a sua demissão seria a via adotada por Bolsonaro. Com isso, é possível afirmar que os discursos em circulação nas mídias apagam as premissas fundamentais que fazem de Mandetta um ministro do governo Bolsonaro, qual seja: os dois estariam do mesmo lado da “trincheira”: militantes de uma mesma posição política, a da direita.

Pela palavra “entrincheirou” ressoam saberes do campo militar, identificando Bolsonaro à formação discursiva militar, pela qual retornam memórias e práticas totalitárias, coercitivas, marcadas pelo silenciamento. Uma das marcas de identificação do militarismo é o quartel e a trincheira, como os lugares de fortificação. Inicialmente, vemos que presidente e ministro inscrevem-se prioritariamente na mesma FD. O que os diferencia é a posição-sujeito de um e do outro. Enquanto o primeiro busca reforçar o lugar de presidente da República, que lhe permite dizer o que diz e exercer o poder; o segundo, por sua vez, se coloca como ministro da Saúde e, principalmente, como médico, alicerçando-se na ciência para combater o coronavírus.13 No entanto, as diferenças de tomada de posição de um e de outro vão ganhando novas proporções com o crescimento da popularidade do ministro, ameaçando as formas de poder presidenciais. Até que ponto a contradição se mantém como constitutiva? Há um momento em que a contradição se torna tão aguda ao ponto de se tornar antagonismo e promover uma ruptura mais definitiva? Tais questões vão sendo respondidas pelas práticas sociais dos sujeitos em estudo.

A palavra “guerra”, que aparece no artigo de opinião de Safatle (2020), encaminha também para a inscrição ao militarismo, ao totalitarismo, mais aos moldes de força coercitiva do que à adesão. Palavras, enunciados, inscrições do sujeito que constituem o discurso e tornam visíveis as contradições. O embate entre os dois protagonistas parece ter se tornado público a partir da entrevista coletiva realizada pelo ministro da Saúde, no dia 30 de março de 2020.14 Esse é um dos marcos importantes no tocante à disputa de poder e de lugar entre Bolsonaro e Mandetta. Nesse dia, foram anunciadas —pelo Gabinete da Presidência da República— mudanças no local e no formato das entrevistas coletivas concedidas e coordenadas até então pelo ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta, no espaço que lhe é próprio: o Ministério da Saúde, com a colaboração de técnicos do ministério. As entrevistas passam a realizar-se no Palácio do Planalto,15 com a coordenação do ministro-chefe da Casa Civil e a participação de outros ministros.

Vemos essa mudança como um marco, tendo em vista o rompimento com a normalidade estabelecida, devido à mudança do espaço físico que centraliza no Governo Federal o direito à fala, alterando o estatuto do ministro da Saúde que detinha isoladamente o papel de porta-voz da saúde. Ainda que as entrevistas sigam centradas em temática própria à saúde e, em tempos de pandemia, os jornalistas buscam ouvir o Coordenador da Pasta, este não ocupará mais o lugar de liderança, passando a ser mais um ministro de governo. Importa destacar a estratégia de esvaziamento de sentidos que é criada, como se fosse possível tirar do porta-voz, Mandetta, a legitimidade das ações propostas por ele. As mudanças de formato das entrevistas implementadas pelo Governo Federal, segundo o Jornal Estado de Minas Gerais (entre outras mídias sociais), determinam que o novo coordenador das coletivas é o Ministro-Chefe da Casa Civil, Walter Braga Netto, juntamente com ministros de outras pastas. Isso promove uma suposta horizontalidade dentro do governo, haja vista que todos os ministros ocupam o mesmo estatuto. Em uma posição diferenciada, estará apenas o Chefe de Estado, o presidente da República.

Braga Netto é militar e ministro da Casa Civil. Não é médico, mas passa a falar em nome de, constituindo-se como o sujeito porta-voz, instaurando um “nós” que é mais uma tomada de posição política, agudizando a contradição já instaurada. Quantos não-ditos emanam desse “nós”? Mandetta, naquele momento, ocupava a posição-sujeito de ministro da Saúde e isso, nos moldes das entrevistas que vinham sendo realizadas no Palácio do Planalto, lhe garantia um lugar de fala que, ao ser alterado, ocasionaria na maior visibilidade à crise institucional. As instituições brasileiras modificam-se, as Fake News pululam, as mídias se agitam, e as tomadas de posição dos sujeitos no poder também são afetadas.

Dito pela mídia hegemônica: o presidente parece estar à beira de um ataque de nervos. De fato, a posição é incômoda, a contradição que lhe é constitutiva fica exposta a olhos nus: ele oscila entre uma ameaça com “canetaço” e o apelo pela volta ao trabalho. Aproxima a religião e a política, colocando em dúvida posições cientificamente comprovadas e, aliando-se a apoiadores evangélicos, faz ressoar a importância das orações, dos milagres; discute posições, convoca para o jejum e reafirma que ele é “o presidente”. Há uma tomada da palavra pela força que o poder de ser “o presidente” lhe garante. As oposições estão postas, ninguém recua politicamente, o embate está posto e se constitui a partir dos efeitos de um governo de litígios insolúveis.

As providências do governo são visíveis nos ministérios da Saúde e da Economia, pois ao presidente cabe o lugar de falas rápidas, fáceis e de amplo alcance social. Tais falas ocorrem no formato de frases de efeito, que produzem impacto momentâneo e até êxtase de alguns apoiadores, mas que podem ser desmentidas no momento seguinte por outros membros de governo ou pelo próprio presidente, conhecido internacionalmente pela estratégia do recuo: sempre é possível voltar atrás e retirar o que foi dito! Em nossa leitura, ele tenta deixar o dito pelo não-dito e vice-versa, confundindo seus eleitores e apoiadores mais ingênuos.

Na primeira entrevista dada no Palácio do Planalto e no novo modelo de entrevistas coletivas realizadas durante a pandemia do coronavírus, estiveram na mesma bancada Onix Lorenzoni (ministro da Cidadania), Tarcísio Gomes de Freitas (ministro da Infraestrutura), e André Luiz de Almeida Mendonça (da Advocacia-Geral da União, AGU). O que se ouve são falas genéricas, sem muito comprometimento. Abre-se um espaço de fala para Mandetta, mas que supostamente não pode ser questionado pela imprensa, o que não é respeitado. Um “teatro” em nome da unificação de um governo pleno em rachaduras. Com isso, começa a delinear-se a saída de Mandetta do Ministério, o problema político torna-se visível, a publicização da contradição decorrente de duas inscrições de sujeitos em uma mesma formação discursiva; a de um governo de direita. Importa destacar que quando salientamos que presidente e ministro ocupam posições no interior de uma formação social específica, num dado momento histórico, estamos explicitando que suas posições se inscrevem prioritariamente na mesma FD, a governamental; mas, à medida que a crise vai se recrudescendo saberes de outras FDs se atravessam e provocam deslocamentos de sentidos: o presidente que defende a economia a qualquer custo (mesmo com tantas mortes) e o ministro que defende a vida a qualquer custo (colapsando a economia, se for necessário). Em outras palavras podemos dizer que a oposição se realiza em um ponto inconciliável: de um lado, a defesa do isolamento horizontal (Mandetta) e, de outro, o isolamento vertical (Bolsonaro).

2.2. As análises

A partir do confronto indicado pelas posições opostas do presidente da República e do ministro da Saúde, começam a circular os enunciados que questionam cada tomada de posição, estabelecendo movimentos entre um polo e outro: a defesa médico-científica da saúde do povo e a defesa capitalista dos postos de trabalho do povo. Metodologicamente, optamos por analisar enunciados produzidos do lugar da Presidência da República, considerando suas relações com o representante do Ministério da Saúde, tomado aqui não como um interlocutor, mas como um sujeito que, ao tomar posição, produz a desacomodação dos sentidos já-estabilizados, promovendo a crise política que culmina com a sua demissão. Selecionamos quatro enunciados, que podem ser agrupados tematicamente em dois blocos, conforme os fatos históricos vão ocorrendo.

BLOCO 1 –As SD 01 e SD 02 revelam a necessidade da negação dos fatos, quais sejam: a) o primeiro caso de coronavírus no Brasil (também o primeiro da América Latina) foi registrado no dia 26 de fevereiro de 2020; b) as primeiras transmissões comunitárias foram divulgadas no dia 13 de março; c) a comitiva presidencial que viajou com Bolsonaro aos EUA apresenta 23 sujeitos que testaram positivo para o coronavírus (a maioria dos resultados é conhecida antes de 16 de março);16 d) o presidente faz dois testes que ele afirma terem dado negativo, mas que ninguém teve acesso.Vejamos as SDs 01 e 02:

(1) SD 01 – “Não é tudo isso que dizem. Até que na China já está praticamente acabando”17 (dia 16/03/2020, sobre o COVID-19).

(2) SD 02 – “Não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar”18 (dia 20/03/2020, em fala referente à possibilidade de ter contraído o COVID-19, em viagem aos EUA).

O discurso presidencial vai contra os fatos e as evidências médicas e científicas. A negação é a sua “arma” principal. Ela se apresenta em frases curtas, representando uma espécie de “gatilho” e a sua eficácia no interior das massas. Respostas simples, rápidas e com “boas notícias” são agradáveis aos ouvidos do povo, já anestesiado pelas desigualdades sociais e pela palavra de ordem: “voltem ao trabalho!”.

A SD 01 apresenta a negação do discurso do outro,19 daquele que já viveu a experiência da proliferação rápida e fatal do coronavírus (a China). Na SD 02, temos a negação da gravidade da doença, a minimização dos sintomas respiratórios, tantas vezes letais; mas há também a metáfora que o verbo “derrubar” traz à baila, posto que ecoem sentidos de “golpe” (queda provocada) no interior de um governo pleno em incertezas de futuro. Dizendo de outra forma: os problemas enfrentados pelo Governo Federal diante da proliferação do coronavírus, tantas vezes negado, seriam capazes de derrubar um presidente? É isso também que o discurso nega com veemência.

BLOCO 2 –As SD 03 e SD 04 revelam o sujeito do discurso que se coloca no centro de tudo. O enunciado começa com um “não”, mas ele tem um funcionamento diferenciado, pois constrói um imperativo dirigido ao povo de modo geral, personificado em um interlocutor imaginário que pode ser muitos: não se esqueça você! Você que votou ou não em mim; você que representa a mídia brasileira ou internacional; você que é brasileiro ou não; você que é médico (cientista) ministro da Saúde ou não, para mencionar alguns. O que realmente está em destaque é o “eu”: “Eu sou o presidente!”. Este enunciado, acoplado ao imperativo, explicita a necessidade de autoafirmação, de autodeclaração, de uma espécie de retomada do seu lugar que por alguns instantes lhe pareceu em perigo. Devemos também observar o funcionamento parafrástico entre os dois enunciados, vejamos:

(3) SD 03 – “Não se esqueça que eu sou o presidente”20 (dia 31/03/2020, sobre a manutenção do confinamento social recomendado por Mandetta).

(4) SD 04 – “Eu sou a Constituição” (dia 24/04/20, em resposta ao questionamento sobre as manifestações que pediam a volta do AI5 e o fechamento do Congresso Nacional).

Em um dado momento da crise, o presidente da República diz “Eu sou o presidente” e, no momento seguinte, em função de outros fatos ocorridos nas ruas, ele afirma “Eu sou a Constituição”, reafirmando a centralização do Governo Federal em seu nome e da sua pessoa na forma da Constituição. A paráfrase produz um efeito de repetição em sua estrutura: “eu sou”, mas ao repetir também se alteram sentidos, ainda que reiterando a máxima do “eu”, acima de tudo e de todos. No caso deste movimento parafrástico, podemos observar que na SD 03 temos a referência ao Poder Executivo e na SD 04 temos a referência ao Poder Legislativo, construindo uma ideia de centralidade do “eu”, pelo menos nessas duas instâncias de poder nacional.

De fato, na SD 04, ao dizer “Eu sou a Constituição”, o presidente da República responde ironicamente aos que criticavam suas manifestações nas ruas, junto ao grupo que pedia a implantação do AI5 e o fechamento do Congresso Nacional. Numa primeira leitura, podemos compreender que ele garantirá o cumprimento da Constituição, mas o tom irônico e as condições de produção desse discurso nos alertam para o fato de que está embutido nesse enunciado o sentido de manutenção da Constituição, enquanto isso convier ao presidente. Tal interpretação alicerça-sena recuperação de um pré-construído que remete ao discurso do Rei da França, Luís XIV, que teria “supostamente” dito “O Estado sou Eu”, reinando por mais de 70 anos (1638-1715). Tal afirmação, em pleno século XXI, não é ingênua, nem passageira, pois é uma paráfrase do dizer de um governo absolutista, no qual o poder estava centrado em um único sujeito: o Rei e, neste caso, o presidente. É como se estivéssemos vivendo em uma República Democrática do “parecer”, na qual “os gestos e as declarações substituem as práticas” (Pêcheux 2011, 91). Tal centralização se confirma com a ruptura que ocorre entre o presidente e o ministro da Saúde.

As condições de produção estão postas: ou o ministro da Saúde entra em um acordo estratégico ou deixa o cargo. Ele toma posição, se coloca em espaço de diálogo, cede em alguns pontos e se mantém mais um pouco à frente dos trabalhos. Estamos sendo convocados a interpretar, mesmo no interior da agitação na formação social e no interior das contradições expostas. Orlandi (2004) ressalta que a contradição está nos ditos e nos não-ditos, o que é observável na fala que ressoou fortemente no dia 30 de março de 2020 (já anunciada em nossa epígrafe), quando o então —não se sabia até quando— ministro da Saúde afirmava que “em política, quando a gente fala ‘não existe’, a pessoa já fala ‘existe’”. Com esse dizer, Mandetta resume a contradição e a “desorientação” que toma conta da política brasileira e, também, das instituições mundiais no que diz respeito à saúde, aos valores, às regras de bem viver. De fato, sabemos que a negação pressupõe uma afirmação, algo que vem antes e precisa, num dado momento, ser negado.

Como sujeitos engajados e absorvidos por esse tempo e esse espaço de crise, não há como não ler/interpretar/compreender textos/discursos que circulam e demandam sentidos. No entanto, do lugar teórico em que “olhamos” para os acontecimentos desse tempo presente, que logo será passado, importa dizer que não nos ocupamos com a veracidade dos fatos e dos ditos, mas como mecanismos pelos quais se constituem tais dizeres e os efeitos de verdade que produzem ou não. O lugar do analista de discurso é incômodo e, inscritos nesse lugar, não seguimos em linha reta, não aceitamos o dito —vemos nesse dito também o que não é dito, que ressoa, demandando interpretação.

Compreendemos a partir de Pêcheux (2002, 43) que no discurso, “há um saber que não se transmite, não se aprende, não se ensina, e que, no entanto, existe produzindo efeitos”. Esses saberes fazem parte daquilo que, na perspectiva discursiva, vemos como funcionamentos da memória, que retorna e ajuda a interpretar os dizeres e saberes que constituem os discursos de um determinado tempo —poderíamos dizer de hoje, mas o presente já é sempre passado. Assim, lemos o texto de opinião de Vladimir Safatle,21 no qual ele traz Freud, mostrando a atualidade da tese, em que o estudioso dizia que “o poder molda sujeitos, fazendo-os a sua imagem e semelhança”, discutindo a constituição de identidades coletivas por identificações a lideranças.

O articulista trouxe a tese de Freud para discutir a manifestação realizada no dia 19 de abril de 2020, em que adeptos de Bolsonaro pediam o retorno dos militares, a volta do AI5, o fechamento do Congresso e do STF. O autor trouxe, ainda, a atitude de tantos diante da dor do outro, posto que zombem dos mortos devido à pandemia, mesmo sabendo que estão sujeitos à contaminação, destacando a mutação ocorrida, na qual “expressões de desprezo, de indiferença e violência antes inimagináveis de serem feitas a céu aberto e na frente de todos se tornam manifestações cotidianas, em uma espiral em direção ao abismo que não parece ter fim” (Safatle 2020, s.p.).

Vale destacar nessas reflexões o movimento de pessoas em apoio ao presidente, o qual segundo Safatle (2020), continua inalterado. O que muda são os apoiadores, à medida que o governo se aproxima das classes “vulneráveis”, que são levadas a escolher mentre o capitale a vida. Essa escolha se sustenta na interdição de uma terceira tese que é “nem a bolsa, nem a vida, mas os dois”.22 Os acontecimentos que envolvem a pandemia passaram por alterações, de tal forma que as entrevistas coletivas, que o Brasil vinha assistindo no Palácio do Planalto, sinalizavam para as contradições confirmadas ou não, diante de especulações, instaurando equívocos e rupturas, mas sem fugir das regularidades que vinham se destacando nesse discurso.

Dentre tantos outros, no dia 08 de abril de 2020, em meio à pandemia (crise sanitária, política e econômica), viralizaram nas mídias digitais as notícias de um possível afastamento imediato de Mandetta da pasta da Saúde, o que terminou por não se confirmar, deixando no ar pistas de que houve concessão, mudança de posição, abrandamento dos ânimos, reestabelecimento dos laços. No entanto, declarações, desmentidos, afirmações, avanços e retornos nas posições do presidente e do ministro mostraram como um problema sanitário afeta a saúde, as relações sociais, políticas e econômicas do país, o que dá visibilidade a um discurso não transparente e nem homogêneo, pleno em contradições. No dia 16 de abril,23 Mandetta confirma a sua saída do ministério, dizendo-se cansado dos recuos do presidente, que não conseguiu, pelo visto, “moldar” por meio do poder o ministro inscrito no lugar legitimado pela ciência, pela repetição de que só trabalhava com o que é ciência, referindo-se à administração da cloroquina a pacientes infectados pela COVID-19.24

A relevância desse recorte analítico manifesta-se pelo entrecruzamento, pelos antagonismos, pelos embates, e pelos equívocos que rompem com o que Pêcheux (1997) chama de norma identificadora. A norma identificadora que significa em um discurso a repetição, a reprodução responsável pela identificação de posições-sujeito e de acontecimentos instauradores de evidências que, pelo trabalho da ideologia, instauram ditos, não-ditos e enunciados que retornam sob o estatuto do que é re-dito.

3. Considerações finais

Palavras de ordem, enunciados curtos, simplificações... Há um esvaziamento de sentidos, o significante se esvazia de significados e o sujeito é tomado por uma sensação de desconhecimento de tudo aquilo que acreditava saber sobre governo, sobre ministro, sobre saúde, sobre cuidado (de si e do outro), sobre liberdade de ir e vir...

Que discurso político é este (tão dividido) que, produzindo efeitos ideológicos em nossa contemporaneidade, altera as relações entre sujeitos que integram um governo, bem como alteram as relações entre Estado e sociedade civil? E mais do que isso, como caracterizar um discurso político tão dividido que passa a intervir nas relações sociais entre os sujeitos, por meio do movimento entre o conhecimento e o desconhecimento? Para circunscrever um pouco estas questões, apresentamos alguns ditos que carregam em si os não-ditos e que, pela paráfrase, trazem à baila o que já foi dito em outras condições de produção. Nosso esforço foi o de compreender um pouco mais dessa história do tempo presente, em que ressoam a memória e os pré-construídos que nos dizem o que é uma república, uma democracia, um governo, um presidente, um ministro, uma pandemia, etc. Na perspectiva discursiva, defendemos que o discurso nunca é homogêneo, nem fechado, mas que as regularidades dão visibilidade ao que é memória. Poderíamos dizer que há indicações de um consenso, contudo é mais produtivo dizer, juntamente com Orlandi (2012, 171), que “todo o dizer se produz sobre um já-dito. Todo dizer é assim um gesto de interpretação, uma posição entre outras, em relação à memória”.

A circulação de acontecimentos em forma de notícias ou de comentários é bastante veloz e intensa, impossibilitando, muitas vezes, a identificação da origem da informação. Ao analista de discurso, entretanto, não importa a origem, o conteúdo do que é dito, mas sim a língua na história, fazendo sentido (Orlandi 2002). O modo como o “discurso sobre” os acontecimentos circula e faz sentido na formação social envolve também o sujeito analista. Ninguém escapa à interpelação ideológica que afeta os sujeitos, ninguém está neutro e poderá fazer uma análise totalmente isenta. Diante da provisoriedade e da rapidez da circulação do acontecimento em (dis) curso, nesse espaço da mídia mais especificamente, o analista realiza um gesto de interpretação, levando em conta os modos como a língua, na história, instaura sentidos. O gesto interpretativo sinaliza para o envolvimento, para a não neutralidade, conforme Pêcheux (1997), ou seja, não somos isentos à interpretação que ora propomos. Os acontecimentos do futuro, certamente, demonstrarão a provisoriedade de nossas análises, nosso esforço em “problematizar”25 o que podemos ver, mas demonstrarão também como se dão os processos interpretativos em tempo real, sem o tão desejado “distanciamento dos fatos” que nos garante os efeitos de alguma estabilidade de sentidos.

Nosso interesse centra-se no que tem circulado na mídia digital sobre a crise sanitária, política e econômica que se abate sobre o Brasil, e os dizeres advindos, principalmente, de dois sujeitos já citados. Isso faz com que retomemos Pêcheux (2011) e o texto em que ele discute a eficácia da ideologia na manipulação de sujeitos, afastando-os do coletivo. O investimento na individuação desses sujeitos a partir de estratégias centradas em antecipações, pelas quais, segundo Orlandi (2002), o sujeito se coloca “no lugar” em que o outro ouve suas palavras, direcionando, dessa forma, o dizer. O movimento de uma posição a outra contribui para que o interlocutor organize e dimensione o dizer, buscando a adesão ou a manutenção dessa adesão. A antecipação é uma estratégia disponível ao sujeito, mas não garante que a interpretação seja aquela desejada/planejada pelo sujeito que ocupa o lugar do dizer. Isso vale para analisarmos os pronunciamentos do presidente e do ministro, bem como para analisarmos os enunciados produzidos na e pela mídia.

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1 Noção desenvolvida por Serrani (1996).

2 “A COVID-19 (termo em inglês que significa Corona Virus Disease 2019) é uma doença infecciosa respiratória causada pelo coronavírus SARS-CoV-2. O quadro clínico pode variar de infecções assintomáticas a infecções respiratórias graves”, conforme explicita o Observatório de informações em saúde da UFSM, disponível em https://www.ufsm.br/coronavirus/observatorio. Data da consulta, 12 de dezembro de 2020.

3 Sistema Único de Saúde ao qual todos os brasileiros têm acesso gratuito.

4 Dissemos que este acontecimento ainda está por significar, tendo em vista que só o distanciamento espacial e temporal do acontecimento pode permitir uma interpretação mais objetiva. Pautamos-nos, para isso, no enunciado “A história julgará”, trabalhado por Venturini (2020), sinalizando que a história é tida como julgadora/interpretadora de acontecimentos, especialmente, acontecimentos políticos.

5 Venturini e Winchuar (2017, 85) diferenciam o político e a política, considerando “o político como o próprio do discurso e a política funcionando duplamente como o político (polêmica, debate, escolhas) e, como política (envolvendo a divisão e partidos)”.

6 A tradução para o português é Minha luta. Para mais informações, visitar o site: https://revistagalileu.globo.com/blogs/Maquina-do-Tempo/noticia/2016/07/por-que-voce-deveria-ler-minha-luta-de-hitler-que-completa-91-anos.html. Data da consulta, 16 de abril de 2020.

7 Pode ser consultado em: https://www.bolsonaro.com.br. Data da consulta, 16 de abril de 2020.

8 Para maiores informações sobre o histórico do coronavírus no mundo, consultar o link: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6101:covid19&Itemid=875. Data da consulta, 16 de abril de 2020.

9 Que foi demitido enquanto escrevíamos esse artigo, no dia 16 de abril de 2020. O substituto foi o Dr. Nelson Teich.

10 Mais informações oficiais sobre Mandetta, consultar o site: https://www.saude.gov.br/o-ministro. Data da consulta, 16 de abril de 2020.

11 Tomando a fotografia como aquela que põe a língua em funcionamento “pois estabelece uma relação do sujeito com o social, com o ideológico, com o inconsciente e com o histórico” (Brust e Petri 2013, 34).

16 O que pode ser consultado pelo link: https://www.estadao.com.br/infograficos/politica,a-comitiva-presidencial-infectada-pelo-coronavirus,1084402. Data da consulta, 02 de maio de 2020.

19 Authier-Revuz (2008, 118) destaca o discurso do outro como o que está presente, mas não localizado, podendo ser recuperado “por traços do já- (e não assinalado por marcas)”.

20 Afirmação disponível no site: https://www.oantagonista.com/brasil/nao-se-esqueca-que-eu-sou-o-presidente/. Data de consulta, 03 de maio de 2020.

22 Consultar no site: https://istoe.com.br/o-arroubo-autoritario/. Data da consulta, 01 de maio de 2020.

24 Conforme pode ser acessado pelo link: https://istoe.com.br/so-trabalho-com-o-que-e-ciencia-diz-mandetta-sobre-questao-da-cloroquina/. Data de consulta, 21 de abril de 2020.

25 No sentido que lhe emprestam Aguilar et al. (2014), no artigo “Qué es un corpus?”.