Rebeldias e disforias na canção
O quereres de Caetano Veloso

Marília do Espírito Santo Carvalho

Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil

marilia.carvalho@edu.udesc.br

Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas

Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil

sergio.freitas@udesc.br

Recepción: octubre 2021

Aceptación: diciembre 2021

Resumo

Caetano Veloso e sua canção O quereres são revisitados neste estudo sob o prisma da rebeldia, experimentada aqui como lente musicológica. Pressupondo a necessidade de adequação entre critérios de análise e objetos analisados, são investigadas relações entre discursos de transgressão e escolhas musicais. Argumenta-se que aspectos contextuais tais como a história de vida do cancionista, sua dicção e seu projeto para essa canção em especial, reverberam em diferentes camadas de O quereres, sendo percebidas, inclusive, na maneira como são concebidas suas progressões harmônicas. Com isso, implicações da distinção entre progressões e sucessões são debatidas, e a interpretação de harmonias pelo viés modal é problematizada, sinalizando, por fim, que a canção requer uma escuta densa e atenta às suas disforias.

Palavras-chave: teoria e crítica da música popular, Caetano Veloso, O quereres, rebeldia

Rebeliones y disforias en la canción O quereres de Caetano Veloso

Resumen

Caetano Veloso y su canción O quereres son revisitados en este estudio desde la perspectiva de la rebelión, propuesta aquí como lente musicológica. Asumiendo la necesidad de ajustar los criterios de análisis y los objetos analizados, se investigan las relaciones entre los discursos de transgresión y las elecciones musicales. Se argumenta que aspectos contextuales como la historia de vida del compositor, su dicción y su proyecto para O quereres, reverberan en diferentes capas de ella, siendo percibidos, incluso, en la forma en que se conciben sus progresiones armónicas. Con eso, se debaten las implicaciones de la distinción entre progresiones y sucesiones, y se problematiza la interpretación de las armonías a través del sesgo modal, señalando, finalmente, que la canción requiere una escucha densa y atenta a sus disforias.

Palabras clave: teoría y crítica de la música popular, Caetano Veloso, O quereres, rebelión

Rebellions and Dysphorias in the Song O quereres by Caetano Veloso

Abstract

Caetano Veloso and his song O quereres (“The wants”) are revisited in this study from the perspective of rebellion, applied here as a musicological lens. Assuming the need to adjust analysis criteria and analyzed objects, relationships between transgression discourses and musical choices are investigated. It is argued that contextual aspects, such as the songwriter’s life story, his diction, and his project for this song in particular, reverberate in different layers of O quereres, even being perceived in the way which their harmonic progressions are conceived. Thus, distinctions between progressions and successions are debated, and the interpretation of harmonies through the modal bias is problematized, finally signaling that the song requires a dense and attentive listening to its dysphorias.

Keywords: Theory and criticism of popular music, Caetano Veloso, O quereres, rebellion

A rebeldia como lente de estudos

Nos estudos musicais classificar, qualificar e agrupar são ações corriqueiras que envolvem a adoção de critérios. Explícitos ou tácitos, os critérios mostram aspectos de nossas formas de pensar e agir, e interferem na compreensão dos fenômenos musicais. Dependendo dos critérios aplicados, uma mesma música pode ser criticamente percebida de maneiras muito diversas, o que contribui para que a análise, suas funções, procedimentos, ferramentas e parâmetros, envolvidos na validação de artistas e repertórios, sejam temas constantes na musicologia.

Considerando, então, que pensar a análise implica pensar seus conceitos, e que a partir da virada do século XX diferentes segmentos da música ocidental procuram provocar, desafiar ou desobedecer normas vigentes, questionamos se o conceito de rebeldia pode auxiliar o exame de uma parcela dessa música recente. Entendida como a tendência ao não conformismo, não aceitação, reação ou oposição, a rebeldia, que é abordada por diferentes perspectivas –políticas, sociológicas, antropológicas, filosóficas, pedagógicas, poético-literárias– assinala aqui uma aproximação entre esses campos e as investigações musicológicas, num texto que atualiza resultados de um estudo sobre relações entre discursos de transgressão e escolhas musicais, e vincula-se a uma pesquisa mais ampla que, em síntese, averigua dinâmicas musicais de desacato à cultura tonal.1

Em música popular, a rebeldia costuma ser mais imediatamente associada aos discursos do rock e sobre ele. Entretanto, essa noção está presente em contextos variados: nas canções de protesto latino-americanas, nas rebel songs irlandesas e escocesas, no blues, no folk, no reggae, no rap, entre outros. Partindo da hipótese de que certas sonoridades e, particularmente, certas combinações de acordes são capazes de sugerir sentidos que extrapolam as prescrições estritamente harmônicas, a rebeldia é experimentada nesse ensaio como uma lente de estudos; como conceito musicológico. Problematizando a adequação entre critérios de análise e objetos analisados argumenta-se que, na abordagem de fatos musicais relacionados a discursos de rebeldia, convém adotá-la como valor crítico, uma vez que decisões musicais podem se justificar ou ao menos expressar afinidades com esse dado.

Nos diversos contextos são também diversas as relações que as músicas e os músicos estabelecem com a rebeldia. No universo das canções, vê-se a rebeldia servindo desde mero pretexto para a criação de versos, passando por manifestações e estilos que a incitam e cultuam, até casos em que a própria rebeldia parece transmutar-se em texto e som, sendo a atitude rebelde percebida em diferentes âmbitos da materialidade da canção. Procurando ilustrar tal debate –sobre gestos musicais que em determinados momentos e contextos expressam oposição ou descompromisso com prescrições da tonalidade harmônica– chegamos a uma canção que, assim como seu autor, “vai e volta com tanta rapidez que provoca o efeito do ‘avesso do avesso’” (Tatit, 2002, p. 265). Deixemos que Caetano Veloso e sua canção O quereres tenham a chance de nos inspirar e contribuir com nossos exercícios de crítica.

Caetano Veloso: sempre o mesmo, e sempre diferente

Se as relações que as músicas e os músicos estabelecem com a rebeldia são tão diversas, por que essa lente se aplica a Caetano Veloso e à canção O quereres? Enfrentando limites entre obra e autor, o linguista Luiz Tatit investiga a dicção de cancionistas brasileiros, ou seja, traços da personalidade que, “assimilados em seu gesto artístico e impregnados em sua obra, lançam pistas sugestivas a respeito de sua dicção em particular e, mais amplamente, a respeito do tipo de aptidão e de competência desenvolvido pelo cancionista em geral” (Tatit, 2002, p. 264). Na dicção de Caetano, Tatit (2002, p. 265) sublinha a disforia da cristalização, uma aversão a estereotipações; uma espécie de tédio em relação a mensagens ou soluções maneiristas. Compostos por atitudes convencionais, se os maneirismos, por um lado, ajudam a “estabelecer hábitos e pontos de referência para aumentar o rendimento da interação”; por outro, “obliteram a singularidade pessoal”, ao exacerbarem os “sintomas que conferem identidade ao grupo e não ao indivíduo” (Tatit, 2002, pp. 265-266). Nesse sentido:

Os sinais de cristalização para Caetano nada têm a ver com os fatos consensualmente considerados estereotipados ou conservadores. Trata-se de uma captação subjetiva deflagrada em meio a uma circunstância qualquer de criação ou comunicação, a partir das cartas na mesa. Não é prefixado (Tatit, 2002, p. 266).

O crítico musical Nelson Mota (2019) sugere que conhecer a biografia de Caetano “pode ajudar a entender ainda melhor a sua obra, já que ele sempre expõe sua vida pessoal, suas opiniões, e seus sentimentos profundos em suas canções”. Para Mota, Caetano é:

Revolução permanente; não só no sentido político, artístico, filosófico, mas num movimento de rotação e revolução dos astros em volta de uma estrela (no caso, ele mesmo). Sempre o mesmo, e sempre diferente. Sua versatilidade e seu espírito aberto permitem absorver as influências mais marcantes de cada momento cultural e incorporá-las à sua criação, o que o levou da bossa-nova à MPB, do rock ao rap, e ao funk. [...] Ama desafiar e correr riscos, como tem feito em toda a sua carreira e em seu processo criativo (Mota, 2019).

O professor de literatura Eucanaã Ferraz ressalta a natureza transdisciplinar da canção popular, sublinha a importância de Caetano para a injeção de complexidade na vida cultural do país, e menciona as “modulações cambiantes” da sua “expressão pessoal” (Ferraz em Veloso, 2005, pp. 9-10).

Dando voz a Caetano, recordemos um de seus comentários sobre a identificação rebelde suscitada pela bossa nova e pelo rock:

As reações contra o rock nos Estados Unidos e contra a bossa nova no Brasil se alimentavam da insegurança dos medíocres diante do que quer que ultrapassasse o convencional. E os que desejavam transgredir as convenções e sair da mediocridade reuniam-se em torno daqueles movimentos (Veloso, 2017, p. 72).

Se, no início de sua carreira, a bossa nova desencadeou um “processo radical de mudança de estágio cultural” que o levou a rever seu gosto e possibilidades (Veloso, 2017, p. 68), seu desejo de “transgredir as convenções” persistiu, e se encontra entranhado em suas criações. Atributo de quem tem vontades e ações divergentes, seja qual for a expressão –disforia da cristalização, tédio aos maneirismos, capacidade de ser sempre o mesmo e sempre diferente, modulações cambiantes– todas se referem ao traço rebelde da personalidade de Caetano. Assim, sua tendência a caminhar contra o vento (ou a favor, quando espera-se que caminhe contra) aponta para a validade de ouvirmos suas canções ante a potência da rebeldia. Com Tatit (2002, p. 265), percebemos que a disforia da cristalização se manifesta em todos os níveis de escolha de Caetano, desde as “metáforas, os enredos, os colóquios ou a própria sonoridade do texto”, até “os perfis melódicos e a base harmônica”, sendo O quereres a canção em que se encontra a “melhor síntese desse seu gesto”. Façamos, então, breve incursão por diferentes camadas dessa canção popular. A versão consultada é a primeira, de 1984, faixa 1 do lado B do disco Velô.2

Expectativas e desencontros na poesia escrita de O quereres

Nos últimos 37 anos, com diversas gravações e versões realizadas tanto por Caetano3 quanto por diferentes intérpretes (Fafá de Belém, Gal Costa, Maria Bethânia, Margareth Menezes, Maria Gadú), O quereres tem sido uma de suas letras mais comentadas por especialistas da língua portuguesa. Alguns comentaristas sublinham correlações com Luís de Camões e percebem que “afastadas de sua melodia, as palavras ganham em materialidade e mostram-se enfáticas [...] fazendo com que a letra da canção se torne uma referência preciosa para a poesia escrita” (Fernandes, 2006, p. 4).

A presença de Camões nos trabalhos de Caetano é frequentemente comentada pelo próprio, como ocorre em Língua que, não por acaso, encerra Velô. Língua evidencia o labor literário de Caetano e conclui o disco nos dois sentidos: é a última faixa do álbum, e fornece poderosas chaves de interpretação para as demais canções que o integram. Caetano admite:

Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões
Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar a criar confusões de prosódias
E uma profusão de paródias
Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões

Em Língua Caetano se delicia e nos provoca com os múltiplos sentidos das palavras; a começar pelo título que, além de idioma, é também o órgão do paladar. Já no primeiro verso, o verbo gostar conjugado como “gosto” remete ao sabor das coisas, dando um tom sexual à admiração do cancionista pela língua portuguesa e seu grande poeta. Gostar de “ser e estar”, por sua vez, é:

Se ver diferente, e quem sabe melhor, do que a Língua Inglesa, onde o verbo to be concentra os dois em apenas um. Enquanto ser remete a uma permanência, a uma possibilidade de essência, o estar é uma posição transitória, um estado, coisas que não podem ser expressas, pelo menos não com a nossa precisão, pela língua anglo-saxã (D’Angelo, 2016).

Já os “camaleões” dialogam com o “ser e estar” na medida em que remetem à multiplicidade e reforçam o caráter transitório da existência. Aqui, a rebeldia é subliminarmente evocada, por ser estado efêmero, temporário; por ser impulso ao qual os indivíduos precisam dar vasão através de atos e gestos que, recuperando a citação de Tatit (2002, p. 266), não são prefixados, são definidos por “captação subjetiva deflagrada em meio a uma circunstância”. Nesse sentido, o camaleão simboliza com precisão a possibilidade de ser sempre o mesmo, e sempre diferente. O canto-falado de Língua é vasto; sua breve menção se deve às imagens, ideias e recursos poéticos que se sobressaem também nos versos de O quereres. Encarada como faixa síntese do álbum, a observação desses elementos em Língua nos leva a adensar a escuta de O quereres, possibilitando tanto apreciar sentidos registrados pelo compositor, quanto agregar novos sentidos, reconhecendo a dimensão imaginativa da crítica. Em última instância, Língua contribui para que O quereres se realize enquanto canção; ou, nas palavras de Caetano, nos ajuda a encurtar dores e furtar cores da vida.

Com sua profusão de paródias, Língua nos conduz à letra de O quereres que, em linhas gerais, explora o embate entre expectativas e realidades. Fala das divergências dos quereres de um interlocutor ante as escolhas postas pelo cantador:

Trata-se de um ser que se mostra, em sua essência básica, com características díspares em relação ao que o outro busca, procura ou deseja. [...] o poema gira em torno de tensões. A organização linguístico-discursiva é construída em torno de oposições e de antíteses, que buscam retratar a dificuldade da convivência amorosa, afirmada por quereres distintos, contraditórios, enovelados, confusos (Fernandes, 2006, p. 5).

As tensões em torno das quais o poema se constrói, parecem sugerir desencontros diversos, e não unicamente entre um par amoroso, e são expressas com o auxílio dos verbos querer e ser, conjugados respectivamente em segunda e primeira pessoas do singular, como nos versos de 1 a 4 (Figura 1):

Onde queres revólver sou coqueiro

E onde queres dinheiro sou paixão

Onde queres descanso sou desejo

E onde sou só desejo queres não

Em estudos do campo literário, as contradições evocadas pela letra de O quereres são comparadas às do Soneto 5 de Camões –Amor é fogo que arde sem se ver. Tal diálogo se estabelece na medida em que a “lírica camoniana” é observada em suas “tentativas de definição poética” do amor como um sentimento “contraditório por excelência” (Protta, 2012, p. 313). Além das semelhanças temáticas, comentaristas que desenvolvem essa comparação ressaltam semelhanças de cunho formal, tais como o fato de, excluído o refrão, os versos serem todos “decassílabos do tipo martelo, com a tônica recaindo sempre sobre as terceira e sexta sílabas poéticas” (Protta, 2012, p. 316). Características da poesia escrita de O quereres são também relacionadas com Os Lusíadas:

Um rápido exame pelo plano de expressão, ou mais propriamente pela estrutura do poema, mostra o estabelecimento da relação entre expressão e conteúdo do texto. Percebe-se que a forma do poema é semelhante à adotada por Camões em Os Lusíadas, isto é, seis oitavas (6 estrofes de oito versos) em decassílabo (10 sílabas poéticas), cuja tônica cai na sexta sílaba, mais um refrão em redondilha maior ou heptassílabo (sete sílabas poéticas), composto de um dístico [“ah bruta flor do querer”] que intervém a cada duas oitavas. [...] Para a realização de tal arquitetura isométrica, o trabalho não é fácil, como disse Olavo Bilac: “o poeta trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!” (Fernandes, 2006, p. 5).

Em estudo que aproxima estilos da literatura e letras da MPB, O quereres é elencada dentre as letras de Caetano que dialogam com a estética barroca (Rodrigues, 2003, p. 57), sendo o barroco um movimento literário capaz de revelar:

A constante universal da instabilidade, das formas em devir constante. Esse estilo na língua portuguesa liga-se ao contexto dos conflitos ideológicos, causados pela pressão teocêntrica da Contra-Reforma, dos séculos XVI e XVII. O dualismo (teocentrismo x antropocentrismo, morte x vida, espírito x matéria), a visão paradoxal, o rebuscamento, as estruturas paralelas, com anáforas, quiasmos, enfim, uma série de reiterações, revelam, muitas vezes, um aspecto lúdico. Na arte barroca os valores são instáveis, etéreos, agônicos (Rodrigues, 2003, p. 55).

Figura 1. Forma, harmonia, contorno melódico e versos de O quereres (Veloso, 1984).

O estado de devir identificado por Rodrigues é também captado por Protta (2012, p. 325), que chama a atenção para a impossibilidade de satisfação das expectativas. Já Henriques (2011, p. 93) salienta as contradições que residem em cada um dos oponentes, uma vez que o eu quer mansidão, mas também revolução, e o tu quer ternura, mas também tortura. Assim, o insaciável e o contraditório são características da letra de O quereres. Vale a regra de “ser do contra” (Henriques, 2011, p. 94). Tais percepções são endossadas pelo próprio Caetano:

Muitos pensamentos desencontrados se desencadearam e eu precisei dar forma de versos cantados a eles. No processo, a própria língua portuguesa foi tão musa quanto a moça a quem a letra se refere. Adoro a sensação equívoca que dá o artigo no singular e o verbo na segunda pessoa, com um S no final. A substantivação desse infinitivo resulta intrigante – e o título, saído de um dos versos da última estrofe, sugere o clima de desencontros de que a letra toda fala (Veloso em Carvalho, 2017).

Em suma, críticos que se debruçam sobre a poesia escrita dessa canção além de ressaltarem virtudes métricas e formais, valorizam a maneira como, através de imagens múltiplas, transitórias e paradoxais, O quereres traduz a “constante universal da instabilidade” (Rodrigues, 2003, p. 55). Contudo, apesar dos debates nesse campo darem destaque “à maneira como se integram, se estruturam, se combinam e se desenvolvem no texto os elementos linguísticos que o materializam”, a compreensão e coerência da canção resulta do diálogo entre “conteúdos implícitos” à letra e “elementos extratextuais” (Fernandes, 2006, pp. 1-2). Tal ressalva nos convida a contemplar outros elementos que, inseparáveis das palavras, constituem a canção popular.

Distinções teóricas que ressoam na apreciação da canção

Em dissertação sobre O quereres, Maia (2007, p. 37) reitera percepções de Tatit e afirma que, como um código genético, a mensagem da letra encontra-se impregnada desde seus motivos iniciais até sua forma final, revelando interação minuciosa entre os elementos musicais e linguísticos envolvidos. Nesse sentido, consideremos os múltiplos significados da nota dó (Figura 1). Além de ser a nota mais recorrente na melodia, a nota dó está presente em todos os acordes da canção (Figura 2), aparecendo ora como repouso, ora como tensão (Maia, 2007, p. 35). A presença da nota dó em diferentes contextos pode ser entendida como análoga às relações pessoais e de poder descritas pela letra; assim como o eu lírico, o dó não é permanente, se “disfarça toda vez que o adversário troca de postura” (Henriques, 2011, p. 94).

Além de roçar a língua de Camões, Caetano degusta outras riquezas da alta cultura. Por mostrar que, dependendo das circunstâncias, uma nota pode revelar diferentes facetas, o tratamento conferido à nota dó permite menção à culta temática da ambiguidade em música.4 O decoro5 é outro tópico culto que pode ser rememorado pela maneira como O quereres se adequa interna e externamente a critérios que regulam o universo da canção comercial de sua época.

Figura 2. Nota dó como nota em comum entre os acordes da canção O quereres.

Assim, engenhosamente, recursos musicais talvez desgastados para a crítica tonal, em O quereres sugerem complexidade e denotam compromisso com valores caros à canção popular. Um desses valores é a recriação ao alcance dos fãs. O emprego de poucos e triviais acordes associado à ostensiva repetição da nota dó são características que permitem que O quereres seja performada no formato voz e violão. Tal formato, que marcou a sociabilidade daqueles anos, aproxima quem cria de quem consome a canção, possibilitando maior alcance e apropriação por parte do público. Outro aspecto prezado é a compreensibilidade do texto, garantida, nesse caso, pelo paralelismo semântico (Maia, 2019, p. 7), quando a letra das estrofes varia mas a melodia permanece a mesma.

Averiguando se os elementos intratextuais de O quereres contribuem com a investigação da sua materialidade musical –ou, mais especificamente, se seu ímpeto transgressor reverbera em seus acordes– procura-se cumprir um usual pré-requisito analítico: identificar a tonalidade da canção. Quando entram os versos cantados, a proeminência da nota dó somada à presença do acorde de dó maior (C) no primeiro e no último compassos nos levam a apostar na tonalidade Dó Maior, confirmação que depende da observação da forma.

O quereres possui duas seções, A e B (Figuras 1 e 2). A seção A contém dois segmentos assimétricos: a1, com quatro compassos, e a2, com cinco. Nota-se,
portanto, a conformação de frases musicais que, parafraseando os versos a exemplo de Maia (2007, p. 37), parece enunciar: onde queres o oito, sou o nove. Já na seção B
, a quadratura é regular; são quatro compassos que podem ser divididos em dois segmentos, b1 e b2, de dois compassos cada, se levados em conta os desenhos da melodia e da harmonia (Figura 1, versos 17 e 18, 35 e 36 –“ah bruta flor do querer”). Diferentemente de A, a seção B apresenta sempre a mesma letra, desempenhando a função de um refrão.

Com isso, voltando à questão da tonalidade, a aparição do D7 já no segundo compasso da seção A dá início, agora no âmbito das progressões de acordes, ao embate entre expectativas e realidades que a todo instante ouve-se na letra. Isso porque ao recair em endereço fraco da quadratura sucedendo um acorde de C posicionado em endereço forte, o D7 sugere um padronizado movimento cadencial IV-V na tonalidade de Sol Maior. Considerando que a cadência é recurso de afirmação de tonalidade, e que nesses dois compassos a melodia é construída somente com as notas dó e ré, a hipótese do Sol Maior é favorecida.

No entanto, o acorde de G não é ouvido no terceiro compasso, e nem mesmo em toda a canção. E, intensificando a “construção paradoxal” (Rodrigues, 2003, p. 57), se a ausência de G dificulta o estabelecimento da tonalidade de Sol Maior, dificulta também o Dó Maior, já que em Dó Maior o D7 representa a dominante da dominante (V/V) que, nesse caso, não chega a encontrar sua dominante. Ambiguidades em relação à tonalidade, como essa entre Dó Maior e Sol Maior em O quereres, remetem à conhecida distinção entre sucessões e progressões harmônicas, sintetizada por Schoenberg no primeiro parágrafo de seu Funções Estruturais da Harmonia:

Sozinha, uma tríade é inteiramente indefinida em seu significado harmônico; ela pode ser a tônica de uma tonalidade ou um dos graus de várias outras. A adição de uma ou mais tríades pode restringir o seu significado a um menor número de tonalidades. Uma certa ordem promove tal sucessão de acordes à função de uma progressão (Schoenberg, 1983, p. 1).6

Nessa passagem, Schoenberg enfatiza que o significado harmônico emana das relações entre os elementos; e não apenas define duas diferentes maneiras de combinar acordes, mas expõe, sobretudo, uma hierarquia. Ao afirmar que, dependendo do ordenamento adotado, uma sucessão pode ser “promovida” à categoria de progressão, explicita-se uma questão de valor: o sistema tonal reserva à progressão um lugar mais elevado no ranking das combinações de acordes.

Uma progressão visa um objetivo definido. Se esse objetivo será alcançado, depende da continuação. A continuação pode promover esse objetivo; [ou] pode atuar de forma contrária a ele. Uma progressão tem a função de estabelecer ou contradizer uma tonalidade. A combinação de harmonias na qual uma progressão consiste depende do seu propósito - seja estabelecimento, modulação, transição, contraste ou reafirmação (Schoenberg, 1983, p. 1).7

Então, para que uma combinação de harmonias configure “progressão” é preciso que haja uma meta; um propósito. E esse propósito, resumidamente, consiste na reafirmação de uma tonalidade ou no estabelecimento de uma nova. Lendo Schoenberg, Freitas (2013, p. 4) retrocede aos postulados aristotélicos subjacentes a esse debate e observa que, no âmbito da tonalidade harmônica, a sucessão está para o agregado por ser coisa sem ordem; já a progressão se equipara a um todo por ser uma combinação funcional. Como um todo inteligível, a progressão tem começo, meio e fim, e garante direcionalidade ao plano harmônico. Nesses termos, a presença de sucessões num discurso musical denota inconsistência ou falha na sintaxe harmônica. É indício de agregado; de discurso desordenado, fragmentado, ininteligível. Incapaz, portanto, de se afirmar como um todo.

Mas tais conotações são questionadas, e os discursos tidos como desordenados e fragmentados são abordados por outras vias. Nas artes visuais, Sant’Anna (2017, p. 79) lista a fragmentação entre as estratégias ou meios de se produzir uma obra contemporânea. Lembra que a arte contemporânea atualiza a disjecta membra: a parte (fragmento) adquire independência; pode tomar o lugar do todo, e nem sempre é possível ver nela o todo que a originou. Na poesia, esse tipo de procedimento foi explorado pelos concretistas brasileiros dos anos 1950, que dispunham das palavras de forma não linear, valendo-se das possibilidades que o espaço gráfico da página tinha a oferecer. Nesse movimento, a palavra (parte), assume o lugar do verso (todo). As poesias concretas de Augusto e Haroldo de Campos “viriam a ter participação intensa na história futura do tropicalismo” (Veloso, 2017, p. 156) e, de maneira menos direta, em toda a produção de Caetano.

Assim, na condição de canção popular brasileira dos anos 1980, O quereres aceitaria ser observada como um agregado. Contudo, resistindo um pouco mais a essa possibilidade de coesão na desconexão, experimentemos outro caminho que, embora de maneira menos explícita, ainda implica em abordá-la como um todo. Dispensando o D7 dos tonais vínculos hierárquicos de função dominante, esse acorde pode ser interpretado como um II7 de Dó Lídio, conformando a “cadência lídio C - D/C - C” (Guest, 2017, p. 20), também conhecida como progressão lídio I-II-I. Vejamos alguns autores que se ocupam desse viés explicativo.

O viés modal: esboçando um debate

Maia (2019, p. 18) relaciona a harmonia de O quereres ao sistema modal por identificar procedimentos que privilegiam a sucessão de acordes ao invés do encadeamento. Assemelhando-se a distinção explanada por Schoenberg, para Maia a “sucessão modal” se diferencia do “encadeamento tonal” devido à “utilização individualizada de cada acorde por sua ‘cor’ sonora, e não por sua função harmônica”. Dessa maneira, a cor sonora do D/C dispensa a direcionalidade da progressão: onde queres D/C encadeado com G/B, sou D/C que desvia para C.

Na chamada rock theory, Moore (1992, p. 82) elenca dois casos que se assemelham à alternância C-D7-C-D7 que ouvimos em O quereres, e os interpreta como intertrocas matizadas pelo modo lídio: Dreams, canção com dois acordes, F e G, lançada por Fleetwood Mac em 1977, e Let sleeping dogs lie, lançada por The Mission em 1986, na qual a alternância entre os acordes A e B se destaca desde os momentos iniciais. Biamonte (2010, p. 98) comenta a função de um segundo grau maior na canção Brokedown Palace, lançada em 1970 por Grateful Dead, mas salienta que o “modo lídio é raro na prática do rock”.8 Temperley (2018, p. 35) endossa, “em geral, melodias e progressões harmônicas do rock [...] evitam b2 e #4”9 e, assim como Moore, menciona Dreams, um “caso famoso” do rock sobre essa “situação ambígua”. Observa que, em Dreams, a alternância entre F e G nos faz “esperar que o centro tonal seja dó” mas, lembrando a seção B de O quereres, “a melodia delineia fortemente uma tríade de lá menor, sugerindo lá como um possível centro tonal” (Temperley, 2018, p. 39).10

Doll (2017, p. 88) interpreta os “loops de dois acordes em que as fundamentais estão a uma segunda maior de distância” e sugere que tais harmonias não chegam propriamente a projetar o “efeito esquemático de II-I”, e soam “mais como um IV-V ou VI-VII”.11 Clement é outro autor que comenta essa sucessão modal (I-II, II-I, I-II-I, etc.) no rock, e cita ocorrências das décadas de 1970 e 1980 na música de artistas como Frank Zappa, Jeff Beck, Todd Rundgren e bandas como Blue Öyster Cult, Asia, Tears for Fears e Steely Dan. Para garantir a centricidade em modo lídio no rock, Clement define “regras de estabilidade tonal” (TSR),12 ou seja, chama de regras “tonais” recursos que, supostamente, visam imprimir um caráter modal ao discurso. Com isso, sonoridades ditas modais vão sendo acomodadas no interior da tonalidade harmônica.

Em suas regras, Clement reconhece que, “devido à novidade da progressão I-II, muitas vezes é necessário um reforço contextual adicional” que consiste na realização de uma nota pedal sobre a tônica, e recomenda que a progressão II-V seja evitada. Embora algo das TSR de Clement se confirme na ambígua harmonia de O quereres, e ainda que os acordes de canções como Dreams e Let sleeping dogs lie guardem semelhanças com o seu C-D7-C-D7, um aspecto da crítica musical se sobrepõe: até que ponto as medições intervalares desse tipo de interpretação modal se apresentam como um caminho coerente e integrado ao discurso de canções como O quereres?

Questões assim esboçam um denso debate, sobre a insuficiência do eixo tonal versus modal como principal chave de interpretação analítica para as músicas populares. Nesse sentido, são lançados aqui apenas argumentos preliminares. Os desafios começam pelo fato do termo modo, na atualidade, remeter a diferentes acepções.13 Considerando formulações seminais como as de Vincent (1951, pp. 38, 58-60) e Persichetti (1985, pp. 30-31), a acepção dos modos como coleções diatônicas abstratas e abertas para combinações modernas se encontra na teoria e crítica da música popular, especialmente pela via estadunidense que ganhou força nos últimos anos em discursos sobre o rock (conforme brevemente ilustrado), o jazz,14 e também sobre a nossa música popular.15

A vertente do jazz modal, surgida nos Estados Unidos no final dos anos 1950, forja um tipo de modalidade que, para alguns autores (Tiné, 2014; Ribeiro, 2014; Guest, 2017), está presente também na música popular brasileira. Segundo Tiné (2014, p. 111), através dos meios de comunicação de massa, gerações de compositores brasileiros assimilaram auditivamente esse “uso jazzístico do modalismo”, presente em parte significativa das obras de artistas como Edu Lobo, Baden Powell e Milton Nascimento. Tiné acrescenta à discussão a questão dos nacionalismos, destacando a busca intencional de muitos compositores e instrumentistas populares por “sons mais tipicamente brasileiros”; brasilidade que muitas vezes se traduz num uso de harmonia quartal, que distinguia vertentes do jazz da época. Essa marca está presente em canções como Quebra Pedra e Pato Preto, de Antônio Carlos Jobim, ilustrativas, segundo o autor, do que se entende por “modalismo característico do nordeste brasileiro” (Tiné, 2014, p. 111). Em Verdade Tropical, Caetano Veloso, por sua vez, faz comentários que dão margem a uma série de questionamentos à respeito desse modalismo:

Minha canção “De manhã”, que, entre algumas outras composições do grupo baiano, ela [Maria Bethânia] cantou a pedido dos produtores do Opinião, foi a escolhida por estes para representar o ambiente musical de onde ela vinha, e assim entrou no repertório do show e virou lado B do compacto best-seller do “Carcará”. Muita gente de música apreciava a canção - para minha surpresa, pois eu, embora a achasse bela, a considerava muito primária - e ela acabou sendo gravada pela mais clássica - e classuda - das cantoras tradicionais brasileiras, a divina Elisete Cardoso, e pelo mais popularesco dos filhos jazzísticos da bossa nova, o musicalíssimo Wilson Simonal. Curiosamente essa canção delicada, cuja letra que fala de um amor puro ao nascer do dia me fora sugerida por um samba-de-roda de Santo Amaro, composta sobre a alternância de um lá menor com um ré sétima, o que a leva para o modo menor nordestino, que aparece também no “Carcará”. Esse modo nada tem a ver com o samba-de-roda que inspirou a letra - nem com os sambas-de-roda em geral ou com toda a música do recôncavo da Bahia (na verdade o modalismo nordestino chegava a nós mais através do carioca Edu Lobo do que da divisa da Bahia com Pernambuco) -, mas a sua mistura com a bossa nova trazia para esta um charme diferente e isso contribuiu tanto para a atração que essa minha canção exerceu sobre os músicos quanto para a caracterização das origens musicais de Bethânia que os autores do Opinião buscavam (Veloso, 2017, pp. 105-106).

Nesse trecho, além de afirmar que o “modalismo nordestino” chegava a compositores do Nordeste como ele, “mais através do carioca Edu Lobo” do que pelas referências de sua vida na região, Caetano sugere que o prestígio adquirido por De manhã junto a críticos, produtores e intérpretes do sudeste se deve, em grande parte, ao fato da canção corresponder aos estereótipos que, naquele momento, eram forjados a respeito das sonoridades “tipicamente” brasileiras e, sobretudo, nordestinas. A harmonia era um importante componente na construção dessa narrativa, mesmo que não tivesse “nada a ver”, segundo Caetano, com “os sambas-de-roda em geral ou com toda a música do recôncavo da Bahia”. A fala de Caetano solicita, portanto, suspeitar do modalismo nordestino e averiguá-lo como tradição inventada,16 identificando elementos que contribuíram para difundir e sedimentar uma determinada narrativa sobre a música nordestina.17

Após essas considerações, retomemos a questão central deste texto: ainda que esse viés modal –que compreende os modos como coleções diatônicas– seja adequado para abordar determinadas músicas populares brasileiras, no caso específico de O quereres, em que medida uma interpretação baseada numa lógica intervalar das alturas é capaz de guardar interseções com os demais procedimentos, signos e discurso da canção?

Harmonia em devir e iconicidade na poesia cantada

Sobre a prosa de Caetano nos anos 70 (que prenuncia, portanto, O quereres), Ferraz observa que tais textos, além de serem “vazados numa linguagem fragmentária, marcada por paronomásias, recortes bruscos, colagens”, são assinalados pelo:

Livre exercício do pensamento, que, aparentemente desinteressado do próprio sentido, deixa ver uma lógica peculiar no jogo associativo de conteúdos e na manipulação das palavras, tratadas como matéria sonora. Soma-se a tudo isso um desprezo, típico da contracultura de então, por qualquer ordem intelectual acomodada em paradigmas consagrados (Ferraz em Veloso, 2005, p. 10).

Esses comentários podem contribuir para pensarmos sobre a pertinência da adesão ao referido viés modal na apreciação da harmonia de O quereres. Visto que o termo lídio especifica um modo maior com sétima maior e quarta aumentada, e que, como II7 de dó lídio o D/C (Figura 1, compasso 2)
fica assegurado pela “ordem intelectual” diatônica, sobre a adequação desse caminho interpretativo ao seu discurso, a canção parece responder:

O quereres e o estares sempre a fim

Do que em mim é de mim tão desigual

Faz-me querer-te bem querer-te mal

Bem a ti mal ao quereres assim

Em outras palavras, esse viés modal reconcilia o D/C; apaga sua condição de dominante à espera de uma resolução que não se efetiva. Contudo, essa condição irresoluta é análoga à condição do interlocutor da canção. Sendo assim, sem querer mal aos que aderem à razão modal, a canção, cujos desencontrados acordes são percebidos como algo conflitante em meio à funcionalidade harmônica, parece rejeitar explicações apaziguadoras, por serem estas tão desiguais às suas circunstâncias. Assim, O quereres parece preferir ser abordada como um agregado.

Seguindo Ferraz, nessa canção aparentam reverberar características que, “sem deixar de ser a expressão pessoal de Caetano”, refletem também “o projeto de uma geração de artistas voltados para a liberação dos afetos, da arte, da cultura e da vida” (Ferraz em Veloso, 2005, p. 10). Respeitando as especificidades em relação à harmonia, é razoável supor que Caetano manipule os acordes como o faz com as palavras, deixando prevalecer o procedimento da colagem, e evitando se acomodar ou se subordinar a paradigmas consagrados.

Desconsiderado então o II lídio, a repetição da alternância C-D/C nos compassos 3 e 4 (Figura 1) posterga e deposita no segmento a2 o “anseio” de definição da tonalidade, temática que aproxima a canção também ao ideário romântico:

O anseio é uma característica da arte romântica não somente porque a perfeição –seja no amor, na beleza ou na alma– é um ideal irrealizável, mas também porque, paradoxalmente, a realização seria ela mesma uma imperfeição. Porque o fechamento e a realização transformam o Devir em Ser –em “forma definitiva”, segundo as palavras de Schlegel; e tal forma, rebaixada pelas imperfeições da incorporação material, nunca pode ser ideal e transcendente. Em outras palavras, a perfeição pode ser uma possibilidade conquanto a potência do Devir impeça o ato de Ser (Meyer, 1996, p. 198).18

A partir de Meyer, Freitas (2010, p. 86) observa impactos do universo romântico no âmbito da música popular, e destaca o devir como um estado especialmente valorizado, já que “os modelos perfeitos e acabados refletem um ideal clássico de realização completa”. Assim, enquanto a repetição da alternância C-D/C nos compassos 3 e 4 projeta no segmento a2 a expectativa de definição da tonalidade, o segmento a2, por sua vez, se incumbe de garantir que a expectativa não seja saciada, sustentando, à sua maneira, o estado de devir. Ao ambientar a nota dó em Am, o segmento a2 contribui para aumentar as incertezas em relação à tonalidade principal. Isso porque Am tanto pode ser o sexto grau (vi) de Dó Maior quanto o segundo grau (ii) de Sol Maior. Assumindo o tom de Dó Maior, Am pode ser interpretado como uma tônica relativa, representando a tônica do primeiro compasso. Por outro lado, o tom de Sol Maior é salientado pelo fato de Am ser sucedido por um acorde diminuto: A°. Nesse caso, insinua-se uma progressão ii-vii°, ou ii-V7, uma vez que A° pode ser uma versão de D7, ambos figurações de dominante em Sol Maior.

Nessa instável canção em que, quando uma coisa parece ser, já não é mais, convém aventar interseções entre signos massivamente conhecidos e observar A° como uma das “tinturas de blues” (Nascimento, 2001, p. 65). Nesse caso, no compasso 6, a nota mib da melodia (“e onde não queres nada nada falta / e onde voas bem alto eu sou o chão”) ressoa como blue note decorrente do estereotipado impacto ornamental sobre o diatonismo de Dó Maior, intensificando o bluesy feel associado ao A°. E, se onde queres tonalidade maior, sou blues, onde queres o G, sou Am. De maneira análoga ao que ocorre no segmento a1, em que o acorde do primeiro compasso repete-se no terceiro, Am (compasso 5) é repetido no sétimo compasso, onde espera-se alguma resolução de Aº, turvando novamente a definição da tonalidade. Com esse vai e volta, Am-Aº-Am, o jogo entre expectativas e realidades se intensifica, pois a expectativa de imitação do primeiro segmento é frustrada pela aparição do F (compasso 8), no momento em que se espera ouvir a repetição do A°. Onde queres A°, sou F.

Após tanta dubiedade tonal, ao final da seção A somos surpreendidos ainda com uma terminação plagal (F-Fm6-C): uma solução maneirista, lembrando Tatit (2002, p. 265-266), também conhecida como cadência do Amém por sua cristalização como recurso de confirmação da tônica. Se levarmos em conta os sentidos e conotações desse arquétipo tonal, perceberemos uma fina ironia no disfórico discurso de O quereres, já que, por um lado, a palavra Amém expressa concordância incondicional na liturgia cristã e, por outro, propondo novamente correlações com o devir, “quando as cadências finais são plagais [...] há uma abertura que implica continuação” (Meyer, 1996, p. 211).19

No refrão (Figura 3, seção B) destaca-se um acorde com quarta suspensa, o D7sus4, cuja quarta (nota sol) prolonga a palavra “querer” no primeiro “Ah! Bruta flor do querer...”. Ainda que a opção pelo D7sus4 possa ser ponderada sob a voga desse tipo de acorde na época do lançamento de O quereres, o acorde sus4 acaba por se adequar, já que a presença de uma suspensão sem desfecho sinestesicamente reafirma o discurso do querer insaciável. Algo semelhante ocorre com a interjeição “Ah”: sua utilização é “uma escolha pela indefinição, já que Ah pode denotar tanto alegria, como lamento ou espanto” (Maia, 2019, p. 15).

Voltando à (in)definição da tonalidade, o par Am-D7sus4 do segmento b1 (Figura 3) endossa a sugestão de Sol Maior, se a quarta do D7sus4 (nota sol) puder ser caracterizada como um ornamento sobre a terça (fá#) do acorde dominante (D7). No entanto, o esperado D7 não é ouvido na seção B, ou seja, a sensível do tom de Sol Maior não chega a se manifestar. E se o acorde D7sus4 valoriza a ausência da sensível de Sol Maior no âmbito vertical da canção, ele nos leva a reparar tal ausência também no âmbito horizontal, uma vez que a nota fá# não aparece na melodia da seção B.

Figura 3. Ambiguidades, irresoluções e desencontros analíticos na seção B, refrão de O quereres.

O segmento seguinte, b2 (Figura 3), contém alguns acordes também ambíguos, Am-F, encontrado tanto no diatonismo de Dó Maior (vi-IV) quanto no de Lá Menor (i -VI). Para completar (ou complicar), a presença do acorde F ao final da seção B faz com que, no retorno à seção A, haja novamente um movimento plagal (IV-I) para Dó Maior. Assim, a partir do Dó Maior, a sensível si até aqui ausente em todo o plano melódico, surge como a penúltima nota do segmento b2 (no último “bruta flor”), incrementando a disforia em relação ao estereotipado giro pentatônico que sustenta a melodia do segmento b1. A nota si completa um movimento diatônico descendente por graus conjuntos em direção ao lá, delineando um desfecho, o que até então não havia ocorrido. Com isso, uma terceira tonalidade (também sem dominante e sem sensível) se insinua: Lá Menor. Lembrando que, no projeto da canção, os “muitos pensamentos desencadeados” conformam um “clima de desencontros” (Veloso em Carvalho, 2017), os materiais musicais da seção B parecem cantar: onde queres maior, sou pentatônica; e onde queres pentatônica, sou menor.

Tais comentários são parciais e, sob o viés tonal, dão ênfase às provocações e desacatos de O quereres nos âmbitos morfológico e harmônico. Já no plano melódico, outro traço da dicção de Caetano pode ser assinalado: a euforia da singularidade (Tatit, 2002, p. 266). Contrapartida da disforia da cristalização, a euforia da singularidade, segundo Tatit, “está mais para inteireza do gesto do artista do que propriamente para a sua originalidade”. Para Tatit, esse traço da dicção de Caetano “toma o viés da iconização”, da “construção sensitiva do texto”, da “canção que se transforma, ela própria, em experiência viva”. Opondo-se “de modo complementar e não exclusivo” à narratividade, tais formações icônicas são explicadas como “unidades de sentido indecomponíveis que reclamam uma captação em bloco pelos órgãos sensoriais” (Tatit, 2002, pp. 266-267). Sobre a funcionalidade dessas unidades de sentido numa canção, Tatit explica que:

A formação icônica, tão inerente às linguagens plásticas e a algumas modalidades de poesia, não encontra uma acomodação, digamos, espontânea na superfície do discurso oral e, por extensão, na superfície da canção. Há que se lançar mão de outras medidas musicais para compensar uma eventual ausência de naturalidade. Uma delas, a mais óbvia, é a reiteração insistente de motivos e acentos na linha melódica, de tal forma que os temas tratados iconicamente pelo texto sejam alinhavados (Tatit, 2002, pp. 268-269).

Conforme as Figuras 4 e 5, na primeira vez que ouvimos a melodia dos versos 7 e 8 (Figura 1), a letra diz: “E onde pisas o chão minh’alma salta / e ganha liberdade na amplidão”. Por estarem contidos neste trecho tanto o salto melódico mais amplo quanto a nota mais grave de toda a melodia, observa-se uma espécie de “madrigalismo” (Maia, 2007, pp. 58-59): quando a letra fala sobre a alma que salta, a melodia reitera a mensagem do texto através do salto ascendente de oitava, resultando em formação icônica. Nesse caso, as diferentes alturas (frequências sonoras) fazem com que as imagens evocadas pela letra –da alma que pisa o chão e salta– sejam “captadas em bloco pelos órgãos sensoriais” (Tatit, 2002, p. 267), resultando numa experiência sensitiva. No restante do segmento, a melodia segue reiterando a letra através desse mesmo recurso. Logo após o salto ascendente de oitava, a melodia assume um contorno descendente, como se afetada pela gravidade, e ganha liberdade na amplidão ao atingir uma nota que não havia sido ouvida até então, e que, ao se estabelecer como seu ponto culminante na região grave, representa literalmente um ganho de amplitude na sua tessitura.

Figura 4. Formação icônica entre melodia e letra em O quereres, a partir de Maia (2007, p. 58-59).

Figura 5. Formação icônica entre melodia e letra em O quereres, segundo o modelo de notação proposto por Tatit (2002).

Ainda que breves e parciais, as considerações aqui expostas permitem dizer que O quereres tem um projeto; um propósito que se deixa ler nas palavras, na forma, nas combinações harmônicas e nos desenhos melódicos, mas não em parâmetros cindidos, senão num gesto que, reunindo tanto e mais, se faz ouvir como canção.

Onde queres o sim e o não, talvez

Considerando a impossibilidade de fixar a totalidade do que é posto em cena numa canção como essa, questões relacionadas a timbres, arranjo, criação coletiva e performance, assim como especificidades das conjunturas históricas e contextuais, não foram contempladas. Contudo, os comentários anteriores apontam para a necessidade da letra de O quereres ser “lida com os ouvidos” (Maia, 2007, p. 8), e sua música requerer não apenas escuta, mas leitura densa.

Em suma, O quereres impressiona pela indissociabilidade –ou, por que não dizer– pela harmonia de seus elementos. A canção, que “mostra-se pouco convencional já no título, unindo o singular ao plural”, garante seu alinho ao “nunca deixar-se desvendar” (Iacovino, 2010). Nela, a única ordem que parece se instaurar é a de que nada vem para ficar. Seus materiais musicais deslocam sentidos cristalizados. Se, na produção de Caetano, “não há qualquer padrão de gênero, estilo, letra ou musicalidade que resista por muito tempo” (Tatit, 2002, p. 263), tal desejo parece se concentrar nessa canção, que não se fixa à lógica do simples versus complexo; que não é regida e, consequentemente, não pode ser lida, à partir de binarismos como: racional versus intuitivo, universal versus regional, erudito versus popular. E é nesse sentido que, do ponto de vista musical, sugere-se uma limitação do eixo tonal versus modal.

A complexidade de O quereres reside na sua capacidade de evocar temas intricados através de recursos sintéticos. Nela, sons e palavras comuns favorecem a apreensão, a interação e a reprodução. Ao aclimatar sabores cultos como a lírica camoniana, a poética da ambiguidade tonal e a potência do devir ao universo da canção popular, O quereres age com decoro: é fiel ao que se propõe e zelosa para com o público. No âmbito das combinações de acordes, dispensa rótulos como “cadência lídio” (Guest, 2017, p. 20) que, ao serem contrastados com distinções elucidadas por Schoenberg, expõem as contradições que residem na transposição desses termos para nomear estruturas que, supostamente, estão fora dos domínios hierárquicos da tonalidade. No que diz respeito às suas harmonias, a canção desautoriza ordenações funcionais e recorre às desencontradas sucessões que, a sua maneira, se afirmam como progressões, por estarem engajadas num projeto de finalidade precisa. Onde antes ouvíamos afuncionalidade e desordem, agora ouvimos uma relação inteligível, estabelecida através da pluralidade de elementos indecisos e impermanentes.

Afinal, em O quereres, “onde queres o sim e o não, talvez”. Ou seja, a canção descarta qualquer opção que represente definição, ponto final. Nela prevalece a inconstância, a dúvida. Divergindo do habitual, o sim e o não estão do mesmo lado, pois se opõem à incógnita que o talvez simboliza. O talvez é a escolha pela indefinição, pela indagação constante, pelas possibilidades em aberto. Por isso, as interpretações pelo viés modal são aqui questionadas, na medida em que propõem um veredito; uma resposta que apaga o desvio, fornecendo solução definitiva. Assim, a problematização apresentada visa chamar a atenção para os diversos (des)entendimentos que circundam o termo modo e sublinhar consequências para o campo da crítica quando esta adere inopinadamente às respostas formalistas. Além de fornecer chaves para sua própria leitura, O quereres também nos ajuda a refletir sobre a análise:

Eu queria querer-te amar o amor

Construir-nos dulcíssima prisão

Encontrar a mais justa adequação

Tudo métrica e rima e nunca dor

Nesses versos (de 27 a 30), a canção nos lembra que quando tudo se adequa à métrica, ou seja, quando as coisas se ajustam em regras previstas, não há dor. Encarada como “dulcíssima prisão” por setores da crítica musical, a tonalidade harmônica costuma ressoar como um ambiente que não prevê margem para o talvez; um sistema no qual diversos elementos se articulam e, na “mais justa adequação”, podem ser reconhecidos sem maiores dúvidas, desgastes ou conflitos. Mas o verso que se segue nos recorda que “a vida é real e de viés”: que na vida real, em músicas reais, nem sempre é assim. Nem sempre tudo se encaixa. Podemos nos deparar com assimétricas quadraturas e acordes que nos desafiam; podemos esbarrar em graus que parecem inumeráveis ou resultam em numerações duvidosas. E que, eventualmente, não conseguiremos responder suficientemente à pergunta tida como uma das mais elementares em nossa área: qual é a tonalidade?

Nessas situações, como proceder? Recorrer a soluções padronizadas; a rótulos que ignoram as circunstâncias do fato musical observado? Ou considerar os gestos por trás das sonoridades, atentando para os valores e intensões que se traduzem em escolhas musicais? Este estudo, que opta pela segunda alternativa, contou com o auxílio da noção de rebeldia e concluiu, através do exercício de interpretação da canção O quereres de Caetano Veloso, que a transgressão não reside no uso de recursos específicos. Que desconstruções, provocações, fragmentações e quaisquer demais ‘-ações’, por si, não caracterizam rebeldia. Que são as condições sob as quais os gestos são produzidos que fazem deles rebeldes ou não. E que, de modo geral, os gestos são rebeldes quando vão numa direção diferente da esperada. Quando são arriscados, geram instabilidade, ou permitem desdobramentos imprevisíveis. Quando representam, explícita ou tacitamente, enfrentamento ao status quo ou às leis vigentes.

Em suma, esse texto visa participar, publicamente, de um debate circunstanciado sobre leituras críticas a respeito da canção O quereres e, de maneira mais abrangente, sobre discursos analíticos e musicológicos que acompanham as canções populares. Em áreas como história, sociologia, antropologia, literatura e linguística a canção popular é vista como um artefato cultural sonoramente complexo e discursivamente robusto, que desempenha importante papel nas relações intersociais. Na musicologia, a canção vem reconquistando espaço como objeto de estudos, especialmente no subcampo da teoria e análise musical. Assim, de maneira ampla, a presente reflexão visa contribuir para que cancionistas brasileiros e suas canções sejam cada vez mais ouvidos, estudados e desfrutados. Para tal, precisam ser abordados por diferentes pontos de escuta. No caso de Caetano Veloso e sua canção O quereres, destaca-se o auxílio da rebeldia como criativa e potente lente de estudos.

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Biografias

Marília do Espírito Santo Carvalho

Doutoranda em Música na Universidade do Estado de Santa Catarina e Mestre em Música pela mesma instituição (UDESC, 2018). Licenciada em Educação Artística com habilitação em Música pela Universidade de Brasília (UnB, 2007) e professora efetiva do Centro de Educação Profissional - Escola de Música de Brasília (CEP - EMB) onde leciona flauta doce, prática de conjunto e teoria musical. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7167-7065

Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas

Professor nos cursos de graduação e pós-graduação em Música na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Sua atuação docente, pesquisas e publicações se desenvolvem nos campos da teoria e análise musical. Atualmente desenvolve o projeto de pesquisa “A teoria anda só? Questões de história e reexame analítico em repertório tonal”. ORCID: https://or-cid.org/0000-0002-0215-616X


1 Cf. Carvalho (2018); Freitas (2010, 2013).

2 Lançado pela Philips Records (824 024-1), Velô é o 16º álbum de estúdio de Caetano e vendeu mais de 100 mil cópias no Brasil. No encarte, os arranjos são creditados a Caetano Veloso e Banda Nova, composta nesta faixa por: Armando Marçal (Marçalzinho) na percussão, Marcelo Costa na bateria, Otávio Fialho no baixo elétrico, Ricardo Cristaldi nos teclados, Toni Costa na guitarra e Zé Luís Segneri Oliveira nos saxofones.

3 Caetano regravou O quereres em 2017 para a abertura da telenovela A força do querer produzida pela Rede Globo. No mesmo ano, a emissora solicitou a Caetano uma versão em espanhol para a variante da trama Querer sin límites, e essa versão foi intitulada Los quereres.

4 Cf. Freitas (2019).

5 Cf. Lucas (2005, pp. 10-14).

6 A triad standing alone is entirely indefinite in its harmonic meaning; it may be the tonic of one tonality or one degree of several others. The addition of one or more other triads can restrict its meaning to a lesser number of tonalities. A certain order promotes such a succession of chords to the function of a progression (Schoenberg, 1983, p. 1).

7 A progression aims for a definite goal. Whether such a goal may be reached depends on the continuation. It might promote this aim; it might counteract it. A progression has the function of establishing or contradicting a tonality. The combination of harmonies of which a progression consists depends on its purpose – whether it is establishment, modulation, transition, contrast, or reaffirmation (Schoenberg, 1983, p. 1).

8 The Lydian mode is rare in rock practice (Biamonte, 2010, p. 98).

9 In general, rock melodies and harmonic progressions stay within a set of ten scale degrees –the ‘supermode’– avoiding b2 and #4 (Temperley, 2018, p. 35).

10 ‘Dreams’ is a famous case in point [ambiguous situation] […] We might expect the tonal center to be C. In this case, however, the melody strongly outlines an A minor triad, suggesting A as a possible tonal center (Temperley, 2018, p. 39).

11 Many two-chord loops in which the roots are a major second away do not strongly project <II-I> schema; many actually do not strongly project a two-chord schema at all, instead sounding more like IV-V or VI-VII (Doll, 2017, p. 88).

12 It is necessary to provide three simple “tonal stability rules” for Lydian tonality. [...] TSR1. Lydian pitch centricity is best established through contextual assertion and/or through resolutions of the tonicizing II chord. This rule recognizes the tonicizing power of the II chord, but also acknowledges that, due to the novelty of the I–II progression, additional contextual reinforcement is often necessary. [...] This support is often found in the form of a tonic pedal: an important idiom of the mode when used in rock. [...] TSR2. The II–V progression should be generally avoided. [...] TSR3. The diatonic tritone should be realized with the tonic pitch as the lower note (Clement, 2013, pp. 198-199).

13 A musicóloga Susan McClary, em recente revisão sobre o termo “modo” enquanto conceito crítico da teoria musical, sintetiza: The word “mode” has a particularly vexed history in Western music theory. It brought one set of assumptions to a Greek philosopher, others to a medieval scribe or Renaissance polyphonist, and yet others to tonal theorists, Impressionist composers, post-bop jazz artists, and heavy metal guitarists. For each of these musicians, mode has mattered enormously, yet their basic notions and uses of mode differ fundamentally, often in mutually incompatible ways. And these differ still more from the concept of mode in other cultures, including the music of India and elsewhere (McClary in Rehding & Rings, 2019, p. 61).

14 Cf. Herrera (1995, p. 176), Nettles e Graf (1997, pp. 152-157), Pease (2003, p. 62), Rawlins e Bahha (2005, p. 96).

15 Cf. análises de Chegança, de Edu Lobo, propostas por Tiné (2008, pp. 125-130) e Ribeiro (2014, p. 245-247). Ribeiro (2014, pp. 268-270; pp. 278-280) observa o II7 lídio em duas canções de Caetano Veloso: Gravidade e Trilhos Urbanos. As canções Chegança, Gravidade e Trilhos Urbanos são também lembradas por Guest (2017, pp. 20-21; pp. 36-37).

16 Sobre a invenção de uma tradição e historiografia da música popular no Brasil, cf. Moraes (2019).

17 Sobre a construção dos estereótipos que envolvem o Nordeste brasileiro, cf. Albuquerque Júnior (2011).

18 Yearning is a characteristic of Romantic art not only because perfection –whether in love, beauty, or the soul– is an unrealizable ideal, but because, paradoxically, realization would itself be an imperfection. For the closure and consummation required for realization transform Becoming into Being –into “definitive form”, in Schlegel’s words; and such form, flawed by the imperfections of material embodiment, can never be ideal and transcendent. In short, perfection can be a possibility only as long as the potentiality of Becomings precludes the actuality of Being (Meyer, 1996, p. 198).

19 When final cadences are plagal […] there is an openness that implies continuation beyond the substantiality of sound into the ambiguity of silence (Meyer, 1996, p. 211).