Profetas racionais: uma aproximação às narrativas da marginalidade urbana avançada brasileira

Paula Guerra

Universidade do Porto, Porto, Portugal

pguerra@letras.up.pt

Gabriel Barth da Silva

Universidade do Porto, Porto, Portugal

gabrielbarths@gmail.com

Pedro Henrique de Oliveira Coutinho

Universidade do Porto, Porto, Portugal

pedroholiveira.co@gmail.com

Recepción: octubre 2021

Aceptación: diciembre 2021

Resumo

O presente artigo radica na possibilidade de –a partir das letras de canções–, explorar diversas expressões urbanas subversivas e marginalizadas socialmente. Assim, e considerando o rap, especificamente a obra dos Racionais MC’s, partimos da proposição de que as suas narrativas são simultaneamente um espelho, mas também uma representação dos contextos brasileiros de marginalidade urbana avançada. A partir da escolha de uma canção de cada álbum de estúdio dos Racionais MC’s, foi realizada uma análise de conteúdo acerca das diversas dimensões da vida cotidiana das metrópoles brasileiras expressas pelo grupo –jovens delinquentes, desempregados, habitantes de guetos, negros, mulheres. Concomitantemente, e pela narração da sua complexidade vivencial e dos seus modos de sobrevivência, assumem as canções como forma de compreensão das diversas realidades, apresentando relatos diretos que dialogam com seus pares e com toda a estrutura social na qual estão inseridos.

Palavras-chave: rap, música popular, marginalidade urbana avançada, identidades, resistências

Profetas racionales: una aproximación a las narrativas de la marginalidad urbana avanzada brasileña

Resumen

Este artículo se basa en la posibilidad –a partir la letra de las canciones– de explorar las diversas expresiones urbanas subversivas y socialmente marginadas. Así, y considerando el rap, específicamente el trabajo de Racionais Mc’s, partimos de la proposición de que sus narrativas son, simultáneamente, un espejo y también una representación de los contextos de la marginalidad urbana brasileña avanzada. A partir de la elección de una canción del disco de estudio de Racionais Mc’s, se realizó un análisis de contenido sobre las diferentes dimensiones de la vida cotidiana en las metrópolis brasileñas que expresa el grupo –jóvenes delincuentes, desempleados, guetos, negros, mujeres. Concomitantemente, y para la narración de su complejidad vivencial y sus formas de supervivencia, se abordan las canciones como una forma de entender las diferentes realidades, presentando subordinados directos que dialogan con sus pares y con toda la estructura social en la que viven.

Palabras clave: rap, música popular, marginalidad urbana avanzada, identidades, resistencias

Rational Prophets: An Approach to the Narratives of Brazilian Advanced Urban Marginality

Abstract

This article is based on the possibility to explore various subversive and socially marginalised urban expressions from the lyrics of songs. Thus, and considering rap, specifically the work of the Rational MC’s, we start from the proposition that their narratives are simultaneously a mirror, but also a representation of the contexts of advanced Brazilian urban marginality. From the choice of a song from studio album of the Racionais MC’s, a contents analysis was made of the various dimensions of daily life in the Brazilian metropolises that the group expresses –young delinquents, unemployed, ghettos, blacks and women. At the same time, and through the narration of their experiential complexity and their ways of survival, they assume the songs as a way of understanding the various realities, presenting direct subordinates that dialogue with their peers and with all the social structure in which they are inserted.

Keywords: Rap, popular music, advanced urban marginality, identities, resistances

1. Uma canção é mais do que uma canção

A música, nas suas diversas vertentes e componentes, assume-se como um universo de resistência, de revolução, de reivindicação e de consciência social: uma tecnologia do self na perspetiva de Tia DeNora (2003). Com efeito, segundo essa autora, durante os anos 1980, a sociologia da música sofreu grandes mudanças, especialmente devido aos trabalhos de Howard S. Becker (1982) e Richard Peterson (1978) que levaram ao afastamento do foco estruturalista que vigorava à essa altura e que defendia a ideia da música como sendo uma espécie de espelho da estrutura social. Contrariamente, Becker e Peterson focalizaram-se, nos modos como a música era socialmente moldada, e como a sua produção, distribuição e consumo eram mediados pelo contexto onde essas atividades sobrevinham. Apesar de esta abordagem ter constituído um grande avanço, segundo DeNora, provocou uma fenda: continuou a ser uma perspetiva de “caminho único”, ou seja, explicava-se como a música era influenciada por uma grande variedade de fatores sociais, no entanto, por outro lado, era esquecida como a “vida social pode ser constituída através da música” de forma ontogênica (DeNora, 2003, p. 167). Ora, é precisamente na constituição de uma dialógica inerente ao significado das letras das músicas dos Racionais Mc’s que situamos o escopo deste artigo:1 as criações musicais são simultaneamente produto e produtoras da sociedade, das dinâmicas sociais, das resistências, das representações.

Desenvolvendo um pouco mais o nosso ponto de vista: podemos dizer que desde os finais dos anos 1970, a sociologia das criações artísticas (musicais, no nosso caso) tem vindo a interessar-se por questões como a noção do gosto musical como um meio de construção de diferenças sociais, ou seja, autores como Paul DiMaggio (1982) e Pierre Bourdieu (1984); demonstraram “que os valores musicais não eram ‘puros’ mas ligados à manutenção das distinções sociais” e que a música é uma forma de ‘capital’ cultural inelutável (DeNora, 2003, p. 167). Na senda desses trabalhos, Tia DeNora vai aprofundar a ideia de como a música, como produto material e imaterial, pode ajudar a moldar as identidades, as ações sociais e as subjetividades. No seu trabalho, a autora postulou o conceito de “possibilidades” (affordances) para descrever as habilidades musicais para “passar à ação” (get into the action), ou seja, o papel de mediação estabelecido em relação às ações sociais e experiências pela música: “O conceito de affordance, noutras palavras, ajuda a sublinhar como a música e as propriedades especificamente musicais podem através das suas características físicas (e.g. estrutura melódica e harmônica) e propriedades convencionais associadas (e.g. músicas de amor)– prestar-se a formas de ser e fazer” (DeNora, 2003, p. 170). Susana Sardo (2014) refere que a música constrói uma história própria ligada a processos revolucionários. Por isso, a canção de protesto engloba uma constelação de elementos estilísticos, estéticos, mas também contextuais e ideológicos (Guerra, 2020b; 2020c) que, essencialmente, podem ser associados a uma expressão musical, bem como política e social na América Latina por meio de uma espécie de nueva canción e da nueva trova, algo tanto mais evidente no contexto brasileiro por via do tropicalismo (Castelo Branco, 2005). Dentro desse universo, as expressões musicais tendem a manifestar-se em múltiplas configurações sociais de crítica, de descontentamento e ainda de mudança política, de ação e de luta (Guerra, 2020b).

Robustecendo o nosso argumento, partilhamos com Andy Bennett (2001) a perspetiva de que a análise sociológica da criação musical pode ser bastante proveitosa, no sentido em que o autor encara a cultura juvenil contemporânea como produto das mudanças socioeconômicas e tecnológicas que ocorreram no pós-Segunda Guerra Mundial. Mais, não se pode descurar o papel do rock’n’roll, que levou a um crescente interesse na criação musical por parte dos jovens, que mais do que ouvir, queriam experimentar, tocar, isto é, de certa forma mimetizar-se com os seus ídolos. E isso não se restringiu ao pós-guerra, já que as constantes evoluções tecnológicas permitiram, especialmente nas décadas de 1980 e 1990, um maior envolvimento dos jovens na produção musical, com, por exemplo, o desenvolvimento de equipamentos de produção de qualidade e a baixo preço. Uma outra questão, apontada por Sara Cohen (1994), relaciona-se com a forma como as identidades coletivas formadas no contexto de uma banda dependem incomensuravelmente do contexto local. Estudando o caso de Liverpool, e a importância da tradição musical dessa cidade, a autora constatou que nas décadas de 70 e 80, o desemprego em Liverpool tornou-se extremamente elevado, com poucas opções de emprego para os jovens, o que acabou por tornar a carreira musical como uma opção tão viável como qualquer outra. Outrossim, Ruth Finnegan (2013), no seu estudo sobre a criação musical local, considera que isso é de extrema relevância para se analisar a criatividade nas sociedades contemporâneas. Bennett refere que o processo de fazer música funciona também como uma oportunidade para os jovens se divertirem, falarem com novas pessoas e aprenderem diferentes habilidades musicais. Aliás, além das competências musicais, este processo de fazer música (criação artística) também pode –e deve– ser utilizado como um meio para conceder aos jovens competências comunicacionais para a gestão da sua vida cotidiana (Bennett, 2001, p. 149).

Dentro dessa argumentação, o atual artigo encontra-se dividido em quatro partes. A primeira diz respeito ao enquadramento e entendimento da música, mais concretamente das letras das músicas dos Racionais Mc’s, como uma forma de ação política e ato de resistência, sendo as mesmas pautadas por uma abordagem das problemáticas das identidades e das diferenças. Além disso, pretendemos dar conta da inserção da produção musical do grupo Racionais Mc’s2 em um contexto de marginalidade urbana avançada (Wacquant, 2006). Essa parte é complementada por uma reflexão sobre os Racionais Mc’s como objeto de estudo, tendo como perspectiva, simultaneamente, as opções metodológicas adotadas e critérios analíticos de seleção e tratamento discursivo das canções. A par disso, propomos uma análise das canções num cruzamento teórico-empírico, isso é, analisando de modo individual as músicas propostas, bem como enquadrando-as em um framework teórico relevante, permitindo obter insights sobre a relevância das produções artísticas do grupo, inserindo-as em um contexto geográfico particular e desigualitário do Sul Global. Em último lugar, temos algumas pistas conclusivas. De forma sucinta, podemos afirmar que o foco deste artigo parte de um campo de possibilidades radicadas nas letras das canções do grupo Racionais Mc’s, com vista a explorar, entender e fundamentar a ideia de que elas podem ser tidas como expressões urbanas de subversão, mas também de resistência, face a processos estruturais e estruturantes de desigualdades sociais ampliadas nas cidades de marginalidade avançada do Sul Global, aplicando uma abordagem teórica e metodológica já ensaiada em outros trabalhos (Guerra, 2020a, 2020b, 2020c).

2. Canções, territórios e identidades

Em primeiro lugar devemos refletir sobre a produção das territorialidades, mais concretamente sobre o campo das experiências urbanas possíveis, tal como nos fala David Harvey (1989). Essa reflexão padece da necessidade de colocar em perspectiva as desigualdades sociais repletas de simbolismos que são reproduzidas em processos de territorialização, desterritorialização e (re)territorialização (Barbosa et al., 2020). Outra dimensão central para a abordagem prende-se com a visão de Loïc Wacquant (2014) face à marginalidade avançada. Ora, o que significa isso? O autor refere que esse tipo de marginalidade tende a concentrar-se em territórios isolados ou circunscritos que, frequentemente, são percebidos como lugares perdidos. Basta ter em mente o caso das favelas, por exemplo, tidas como não-lugares na acepção de Marc Augé (2012). Esse estatuto de invisibilidade espacial –mesmo inexistência– assume-se como ainda mais relevante se o conjugarmos com outros eixos, tais como a etnicidade e a racialidade, mas também o gênero, surgindo daí uma desqualificação múltipla dos indivíduos que habitam tais espaços. Partindo desse ponto, os Racionais MC’s –e a sua obra–, podem ser tidos como um meio de criação de (re)significações e de (re)configurações dos mesmos não-lugares. Aliás, se recuarmos à década de 1960, um gueto negro americano era um não-lugar, habitado de forma coletiva e humanizado em que, os sentimentos de revolta face às opressões sentidas e vividas, eram expressos através do soul (Wacquant, 2006, p. 31). Na verdade, a palavra e a música parecem emergir como uma forma de tornar visível as faces invisíveis da cidade, isso é, dar relevo às massas sociais desvalorizadas (Wacquant, 2014). Com a análise das letras das canções do grupo Racionais MC’s, pretendemos romper com as dinâmicas excludentes que pautam a sociedade e os contextos urbanos periféricos.

Paula Guerra (2020a) enuncia que o rap possui uma vertente educativa e pedagógica, no sentido em que não visa a transmissão de um conhecimento de um modo unilateral, mas sim, contrariar as dinâmicas e as lógicas hegemônicas instauradas, pretende estabelecer uma dialética reflexiva, numa lógica pedagógica não formal de partilha do sensível (Rancière, 2000). Para além da força contestatária que a palavra possui ao ser empreguada pela música, as mesmas também se transformam em expressões grupais ocasionando certo processo de mitigação do individualismo. Mais ainda, analisar as letras do grupo em causa, implica romper com a noção de que os problemas sociais estão para além das nossas capacidades de atuação: da nossa agência subalterna (Guerra, 2020a; 2020b). O principal objetivo aqui é dar a conhecer os modos como as letras das canções do grupo Racionais MC’s dão conta dessas questões: em que sentido demonstram que o rap é um novelo que possibilita a criação das cidades a partir de teias de relações intricadas (Calvino, 2009); em que medida demonstram que existem várias camadas que compõem os tecidos urbanos, mas também as vivências, os sentimentos e, claro está, as formas de denúncia que são pautadas e prementes no ato de compreensão das sociedades atuais. É a partir desses pressupostos que criamos uma ligação, diacrônica e sincrônica, com as construções identitárias e com a perpetuação e/ou valorização da diferença nas e pelas letras. A mensagem que é transmitida através da música é associada a um conjunto vasto de sentimentos, de posicionamentos, mas também de temas e de objetos e ainda de contextos e causas.

Dentro do conjunto de posicionamentos associados às letras, conferimos principal destaque aos contextos e às causas, no sentido em que são tão diversos quanto as historicidades que pautam as sociedades contemporâneas, já que circunscrevem e se inscrevem num período temporal e espacial próprio, socialmente construído e vinculado. Assim, o discurso e a narrativa artística –aqui com especial destaque para o rap e ainda mais para o grupo Racionais Mc’s– visam uma desconstrução e a desmistificação de determinados fenômenos, temas e problemas que se evidenciam como máximas, num determinado momento e, claro está, num determinado contexto. Basta termos como exemplo as questões da violência de gênero e a violência racial que se vive no Brasil, aspecto que se intensificou desde a eleição do atual presidente.

Relevando concretamente a identidade negra –tema bastante abordado e premente nas produções musicais do grupo– que implica quase em uma abordagem cinematográfica que retrata o passado, o presente e o futuro. A diferença surge também pelo contexto, isso é, as identidades negras de periferia de certo não serão as mesmas que as identidades negras dos centros. Existe a tendência de se construírem narrativas que pressupõem a visão de A sobre B, ou seja, a lógica da visão do não excluído face ao excluído, algo que deve ser rompido. E os Racionais fazem-no com muita mestria, dando voz às margens invisíveis. A etnicidade (Simões, 2017) encontra o seu refúgio no rap, pois são várias as canções em que conseguimos identificar influências africanas.3 Concomitantemente, essas produções musicais são estabelecidas no espaço urbano e é daí que adquirem poder e força, expressam política e ativamente as tensões constantes que existem entre a multiplicidade de identidades e a sua relação com o urbano. A música e as letras, quando nesses moldes, possuem a capacidade de estabelecer ligações com as diversas experiências de vida que, essencialmente, levam à criação da condição de desfavorecidos, de excluídos e de marginalizados, sendo a racialidade um elemento a destacar nesse campo. Contudo, existe por detrás disso, a necessidade e a força da mobilização política, dado que devido à sua vertente comercial e mainstream –de apelo às massas– se insere em um quadro de pensamento e de oposição face ao regime, às condições de vida precárias e à crítica social. O sucesso do grupo, ao retratar tais questões, pode ser entendido quase como que uma materialização de certa efervescência coletiva (Levie, 2015), dado que fomenta a reflexibilidade e a vontade de romper com a normatividade. Pensando concretamente na sociedade brasileira, podemos aplicar e verificar aquilo que José Sánchez García e Carles Feixa-Pàmpols (2020) evidenciam relativamente ao fato de o espaço urbano ser um território musical (Guerra, 2020b; 2020c). Nas letras do grupo –que serão analisadas em detalhe seguidamente– verifica-se a referência ao espaço, de forma objetiva ou subjetiva. Assim, os palcos urbanos que surgem nas letras, emergem como “o símbolo da sua exclusão e das suas condições de vida: são o padrão de vida que atiram à face da sociedade que os discrimina” (Guerra, 2020a, p. 435). Compreender o outro, implica contrariar a perpetuação dos não-lugares (Fradique, 2003), isso é, ir contra os processos de reprodução de identidades negativas que são assentes em lógicas repressivas sobre o outro.

Seguindo os contributos de Nick Crossley e Joseph Ibrahim (2012), torna-se possível ter como perspetiva os Racionais MC’s como massa crítica, no sentido em que inferem uma ação coletiva. A ação coletiva surge ao mobilizarem um vasto número de indivíduos –nesse caso o seu público– com os mesmos interesses. Ou seja, indivíduos que vivenciam as repressões e os fenômenos de exclusão cotidianamente. Assim, o grupo possui a capacidade de mobilizar o tempo e os recursos, direcionando a sua produção para uma lógica interventiva, de resistência e de existência, ao mesmo tempo que –dentro do panorama social brasileiro– se assumem como massa crítica e contestatária das vivências desiguais. Essa massa crítica que se cria em torno das obras artísticas possui, também ela, impactos na formação e na solidificação de identidades coletivas, mas também possui a capacidade de acionar mecanismos de reapropriação espacial, quebrando com os processos de desterritorialização (Barbosa et al., 2020). Os Racionais MC’s são a cara da ação coletiva. Dessa feita, para compreendermos como o grupo Racionais MC’s expressa a diversidade da vivência subalterna brasileira, decidimos adotar, em termos metodológicos, uma análise da discografia de estúdio do grupo que compreende quatro álbuns –de 1994 a 2014. Para cada álbum, delimitamos a nossa análise a uma canção, seguindo um conjunto de critérios de seleção. Assim, a análise das canções baseou-se num processo de audição e de posterior leitura e categorização temática (Bardin, 2010), que serviu de cimento na criação de um conjunto exaustivo de categorias e de subcategorias. Esses procedimentos encontram-se, grosso modo, sustentados numa abordagem qualitativa dos conteúdos, indo ao encontro das narrativas presentes nas produções do grupo. Para o álbum Raio-X do Brasil (1994), a canção escolhida foi a “Homem na Estrada”. Essa canção marca uma transformação do gênero discursivo que era apresentado nas músicas do grupo até então, apropriando-se de um caráter narrativo, iniciando também um processo de canções mais longas, afastando-se das características comerciais. É também reiterado por Faria (2017) como essa canção foi uma das que abriu o caminho do grupo para a presença nas rádios de São Paulo.

O álbum Sobrevivendo no Inferno (1997) é central na discografia do grupo no que diz respeito à dimensão nacional. Isso é reiterado pela presença do álbum entre as obras obrigatórias de leitura para o processo de ingresso da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A canção selecionada foi “Capítulo 4, Versículo 3”, por ser a canção do álbum mais focada na abordagem de temáticas como a pobreza e a violência. Nesse sentido, Moreira (2017), bem como Machado e Franco (2018) realçam a atualidade e a pertinência desses dados e desses discursos, uma vez que tal realidade ainda diz respeito àquilo que se vivencia na sociedade brasileira. Nada Como Um Dia Após O Outro Dia (2002) marca a apresentação, de forma evidente, de uma leitura lírica correlacionada com a “consciência da passagem do tempo e reflexão sobre a posição social do grupo” (Zeni, 2004, p. 225). Esses fatores são ressaltados na canção “Negro Drama”, que apresenta um caráter mais biográfico no seu decorrer, em que o rapper Mano Brown conta a sua história de vida no drama da periferia, havendo uma maior subjetivação, inclusive sobre o processo de saída das regiões periféricas, como Oliveira, Segreto e Cabral (2013) exploram. O álbum Cores & Valores (2014) surge num contexto diferente do grupo, em que eles estão numa posição de referência histórica do rap brasileiro, em que muitos jovens no gênero se espelham na sua produção. O álbum apresenta algumas formas de como os rappers ainda podem lutar, fato que é ressaltado na canção “A Praça”, que possui como tema a marginalização e a perseguição do rap e de quem vivencia essa realidade. É abordado o “despreparo do estado e da bem conhecida carnificina policial ao lidar com sujeitos, sobretudo da periferia” (Oliveira, 2018, p. 126).

3. A estrada sem Estado

“Um homem na Estrada”, canção composta no início da trajetória dos Racionais Mc’s, em 1994 representa um dos maiores sucessos do grupo. Notabilizou-se não somente pelo seu alcance para além dos muros da periferia, mas também por expor, de maneira clara, contundente e radical as diversas mazelas sofridas por uma parcela da população excluída e, ao mesmo tempo, controlada. A letra escrita pelo vocalista do grupo, Mano Brown, busca retratar os desafios de um ex-presidiário, negro, pobre e periférico, ao tentar (sem sucesso) se reinserir na sociedade. A tônica da canção é o narrador que se mistura com o personagem e começa explicitando seu desejo de sair do mundo do crime:

Um homem na estrada recomeça a sua vida; sua finalidade, a sua liberdade; que foi perdida, subtraída, e quer provar a si mesmo que realmente mudou; que se recuperou e quer viver em paz; não olhar para trás; dizer ao crime nunca mais (Racionais, 1994).

O único desejo do personagem é viver uma vida comum que teve a sua liberdade retirada à força. O processo de arresto da liberdade exercida pelas prisões constitui, segundo Goffman (1974), um processo de “mortificação do eu” que é padronizado pelas instituições totais, que aqui se referem às forças policiais e instituições governamentais. De certo modo, com a leitura do excerto acima apresentado, podemos aferir que o grupo enuncia que na arte, mais concretamente na música, os indivíduos podem obter outras formas de liberdade, especialmente quando referem que é na estrada que recomeça a vida. Tal interpretação advém do fato de o grupo ser composto por indivíduos que, por causa da sua cor de pele, tendem a ser estigmatizados socialmente e, nesse sentido, podemos aferir que a música lhes conferiu liberdade e uma alternativa a uma vida de crime e de insegurança. Logo a seguir, o personagem continua: “pois sua infância não foi um mar de rosas, não; na FEBEM,4 lembranças dolorosas então” (Racionais, 1994). Fica explícito, portanto, que não foi a primeira vez que o personagem perdeu sua liberdade, uma vez que viveu o mesmo processo na infância. A prisão, como instituição total, marca o processo de “mortificação do eu” já no momento em que coloca uma barreira que separa o indivíduo do mundo externo. A seguir prossegue a letra: “sim, ganhar dinheiro, ficar rico, enfim” (Racionais, 1994). Esse verso aparece quatro vezes ao longo da canção, não despretensiosamente. A sociedade de consumo produz padrões de comportamento, criando não só produtos, mas também desejos de consumo (Baudrillard, 2005). A respeito da temática da sociedade de consumo, Miles (2015) oferece-nos uma visão deveras importante, no sentido em que o autor enuncia que a sociedade de consumo possui a capacidade de oferecer certo sentimento de estabilidade e de pertença aos jovens e aos indivíduos em geral, daí que possamos aferir a importância de tal elemento na letra da música, principalmente se entendermos a inserção na sociedade de consumo como sendo um meio de lutar contra tudo aquilo que reforce o seu status quo. Assim, esses desejos vão atingir todas as classes, inclusive as classes excluídas. Levando-se em conta uma intensa desigualdade como a da sociedade brasileira, os meios que as classes subalternas vão utilizar para atingir o consumo vão ser diferentes das classes mais abastadas, inclusive em relação ao que é considerado crime em uma sociedade (Becker, 2009).

O coletivo segue discorrendo sobre as precárias situações em que vive sua vida de “liberdade”, assim como o contexto extremamente violento. Ainda que fora do controle através de uma instituição total, o personagem ainda se depara com a ausência de condições básicas de existência, e em meio a esse cenário, o único pensamento do indivíduo é sair daquela situação, como pode ser percebido no excerto seguinte:

Equilibrado num barranco incômodo, mal-acabado e sujo / Porém, seu único lar, seu bem e seu refúgio / Um cheiro horrível de esgoto no quintal/ Por cima ou por baixo, se chover será fatal [...] Acharam uma mina morta e estuprada / Deviam estar com muita raiva (mano, quanta paulada!) [...] Sim, ganhar dinheiro, ficar rico, enfim / quero que meu filho nem se lembre daqui (Racionais, 1993b).

Aqui, a violência apresenta uma dupla dimensão: primeiro, a violência simbólica e depois, a violência física. O primeiro conceito, utilizado amplamente por Pierre Bourdieu (1999), não exclui o segundo, mas tem como objetivo ressaltar o poder e a eficácia dessa forma de dominação. O mecanismo fundamental da reprodução da violência e da dominação simbólica é a aceitação pelos dominados como legítima, o que supõe um desconhecimento por parte desses –aspecto que o grupo, em certa medida, contraria. Dessa feita, cotejamos que o principal simbolismo das letras do grupo reside no fato de, em certa medida, destacarem dinâmicas subjetivas sobre as realidades vividas e respetivos significados, oferecendo visões distintas acerca dos locais, das repressões e dos modos de vida. Contudo, a subjetividade vem a par de uma crítica e, claro está, da necessidade de mudança e do desejo de transformação. Entretanto, a estrutura coercitiva imposta pela sociedade, torna praticamente impossível sua ascensão social. Isso fica explícito na seguinte passagem:

E o resto da madrugada sem dormir ele pensa; o que fazer para sair dessa situação / desempregado então / com má reputação, viveu na detenção, ninguém confia não; e a vida deste homem para sempre foi danificada (Racionais, 1993b).

Howard S. Becker (2009) ensina que as regras são feitas por determinados grupos sociais e, em certos momentos, são impostas. Tais regras sociais determinam padrões de comportamentos, de modo que alguns são considerados certos e outros errados. Tal questão remete-nos para outro ponto, que se prende com o que Yoko Kanemasu e Asenati Liki Chan-Tung (2020) referem, ou seja, a existência de uma espécie de legitimidade cultural que, a seu tempo e em diferentes esferas da vida social, vem evidenciar ou exacerbar diversos e distintos graus de marginalização (Wacquant, 2014; Barbosa et al., 2020). Essa marginalização faz com que, consequentemente, se instaurem processos de estigmatização que podem ser encarados como consequências do desvio produzido. A severidade da sanção que é imposta depende de inúmeros fatores, dos valores familiares ao papel na comunidade, mas também a localização geográfica de cada indivíduo, basta termos atenção à importância das favelas como lugar de pertença.

Caminhando para o final da música, percebe-se que o estigma relatado pelo personagem não apenas o limita de ascender socialmente, mas que o torna suspeito de qualquer crime que venha a ocorrer: “assaltos na redondeza levantaram suspeitas [...]; e o boato é que esse homem está; com seu nome lá na lista dos suspeitos; pregada na parede do bar” (Racionais, 1994). Aliás, Oliver Lovesey (2017) na sua obra refere que existe uma tendência para serem ignoradas as realidades materiais da opressão (Guerra, 2020b; 2020c), bem como a popular music. Além disso, trata-se de uma prática um tanto corrente no âmbito dos estudos culturais. O autor destaca a importância da música para se perceberem processos históricos, dinâmicas sociais e vivências. O autor chega mesmo a referir que a música popular possui como principal objetivo desafiar as fronteiras espacio-temporais, algo tanto mais evidente nas letras do grupo aqui analisado. Vejamos um trecho exemplificativo a questão:

Vão invadir o seu barraco, é a polícia; vieram para arregaçar, cheios de ódio e malícia; [...] já deram minha sentença e eu nem “tava” na treta; [...] não são poucos, e já vieram muito loucos (Racionais, 1993b).

Na última estrofe da canção, o eu-lírico é um locutor que noticia a morte do personagem, o caracterizando como “mulato” e tendo uma “vasta ficha criminal” justifica, por si só, o extermínio do indivíduo. A população negra, pobre e moradora de favela se encontra em um contexto que a submete não apenas à perseguição da justiça penal, mas também da violência paraestatal. De maneira oposta a experiência do crime, que rompe com o significado e desorganiza o mundo, sua narrativa tenta reorganizar simbolicamente ao tentar reconstituir um quadro estático do mundo (Caldeira, 2003). Assim, tal como Andreas Walther, Demet G. Lüküslü, Patricia Loncle e Alexandre Pais (2020) mencionam, existe uma franja da população que se vê excluída de inúmeros benefícios sociais, aspeto esse que mina a visão dos mesmos como “bons cidadãos”, aliás se veem forçados a viverem com a falta de recursos e de reconhecimento, daí a continuação da imposição de separações, proibições, regras de exclusão, que simplificam e encerram o mundo. As narrativas criam preconceitos e tentam suprimir ambiguidades. Junto desses fatores, a partir da narrativa direta e incisiva das letras, pode-se perceber como há uma perceção crítica da própria realidade claramente comunicada pelos sujeitos que a compõem há mais de uma década no Brasil, principalmente em um contexto urbano e com um imaginário similar ao contemporâneo. Outros detalhes surgem no decorrer da narrativa, como a violência de gênero:

Acharam uma mina morta e estuprada / deviam estar com muita / estava irreconhecível, o rosto desfigurado / deu meia noite e o corpo ainda estava lá / coberto com lençol, ressecado pelo sol / jogado, o IML estava só dez horas atrasado (Racionais, 1994).

Outrossim, reconhecer esses relatos permite aprofundar como os casos de crimes de ódio ocorrem na realidade periférica brasileira, e estabelecer uma crítica às formas de atuação (ou ausência de atuação) dos governos e inoperância das políticas públicas. Essa forma de olhar é coerente com a acostagem dos Racionais sobre suas letras, que, em conjunto, buscam explicitar as violências estruturais sofridas, no cotidiano, pelos sujeitos periféricos em conjunto com a tentativa de apontar sendas possíveis para a atuação dos indivíduos face à sua própria realidade para sobreviver no sistema. Através de caminhos tortuosos, a estrada trilhada e narrada pelo grupo permite o desenvolvimento de novas hipóteses para desmascarar as “novidades” de dados de violência na realidade brasileira. Seguindo nas análises das próximas canções, essa perspetiva fica cada vez mais cristalina.

3.1. A negritude no cotidiano

Depois do estrondoso sucesso do álbum Sobrevivendo no Inferno (1997), o grupo Racionais MC’s lançou um álbum duplo chamado Nada como um dia após o outro dia (2002). Com um tom agressivo e subversivo, retrata além da rotina de colossal violência vivida dentro da periferia, o preconceito e exclusão social. Assim como o antecessor, este disco foi aclamado pela crítica ao tornar evidente uma vasta gama de problemas sociais que não eram debatidos na grande mídia. Uma das canções mais impactantes e de maior sucesso do disco, “Negro Drama”, transpôs as barreiras da periferia nas vozes de Mano Brown e Edi Rock ao trazer em forma de música o drama sofrido pela população negra, pobre e moradora de favela. O início da canção é marcado pela voz de Edy Rock, que diz:

Negro drama, entre o sucesso e a lama / dinheiro, problemas, inveja, luxo, fama / negro drama, cabelo crespo e a pele escura / a ferida, a chaga, a procura da cura; negro drama, tenta ver e não vê nada / a não ser uma estrela, longe, meio ofuscada (Racionais, 2002b).

O drama daqueles de “cabelo crespo” e “pele escura” que vivem entre o “sucesso e a lama” delimita já de início seu lugar de fala e o coloca como “a ferida”, referência ao impacto da escravidão no Brasil sofrido até hoje pela população negra. Ao contrário do que se mantém no imaginário popular, sobretudo no brasileiro, o racismo não acabou com a abolição, pelo contrário. A luta constante é a “procura da cura”. Esta canção oferece uma visão única da vida urbana diária, ao mesmo tempo que a valoriza, fazendo com que a mesma se afigure como uma fonte de conhecimento. Os Racionais MC’s oferecem-nos assim uma janela que nos permite vislumbrar os processos profundos de transformação urbana e social, enquanto conseguem atingir um público que outras narrativas musicais não conseguem. Oferecem um meio de enquadramento vivencial e de atribuição de significados às narrativas. A exclusão social advinda daí se condensa na fala do autor que “tenta ver e não vê nada; a não ser uma estrela, longe, meio ofuscada”. Na sequência ele prossegue falando sobre os percalços enfrentados para que possa ser mais do que um “preto fodido”:

O trauma que eu carrego para não ser mais um preto fodido; o drama da cadeia e favela; túmulo, sangue, sirene, choros e velas / passageiro do Brasil, São Paulo, agonia; que sobrevive em meio às honras e covardias / periferias, vielas, cortiços / você deve estar pensando o que você tem a ver com isso (Racionais, 2002b).

O genérico “drama da cadeia e favela” se traduz em situações concretas em “túmulo” (morte), sirene (polícia), choros e velas (velório). A pauperização aparece como fator socio- dinâmico essencial à anomia social do negro, gerando uma espécie de círculo vicioso: anomia e miséria acabam se combinando, se interinfluenciando e se fortalecendo (Fernandes, 2008). Mais à frente, a letra diz: “recebe o mérito a farda que pratica o mal; me ver pobre, preso ou morto já é cultural” (Racionais, 2002). Os poderosos instrumentos de controle social, os quais são capazes não só de forjar a criação de uma cultura e sua assimilação pelos negros (que formam a base da pirâmide social brasileira), mas também de decompor o sujeito em sua intimidade, permitir paulatina e individualmente sua ascensão e restringir sua mobilidade coletiva vertical. O governo, as leis, o capital, as forças armadas, a polícia, o sistema educativo, a imprensa, o rádio, a televisão, a produção literária agem de modo a inculcar nos indivíduos, mais que a tolerância, a aceitação e o endosso da desigualdade racial (Nascimento, 1978). Edy Rock finaliza resumindo em poucas palavras todo o universo retratado na música:

Pesadelo? Hmm, é um elogio / para quem vive na guerra, a paz nunca existiu / no clima quente, a minha gente sua frio / vi um pretinho: seu caderno era um fuzil (Racionais, 2002b).

O contexto de brutal violência e o cenário de guerra constante tornam a vida pior que um “pesadelo”. A educação, que poderia ser vista como uma saída para ascender socialmente, é substituída por soldados subservientes às fações, de maneira que crianças da mais tenra infância não vão à escola, mas carregam fuzis. Então aqui, a música surge como uma arma e como um meio mobilizador, um pouco à imagem do que aconteceu na Tunísia e no Egipto (García & Feixa-Pàmpols, 2020). Essa crítica infere sobre a necessidade de uma redefinição de eixos políticos, ao mesmo tempo que fala em temáticas que envolvem todos os que de uma sociedade fazem parte. Estas letras incitam, de certo modo, a uma efervescência coletiva, pois tocam sentimentos comuns. Então, Mano Brown introduz a história a partir da sua visão:

Crime, futebol, música / eu também não consegui fugir disso aí / sou mais um (Racionais, 2002b).

O crime, o futebol e a música são as válvulas de escape da população periférica, se quiser sair da “lama”, como é referido no início da música. Porém, esses eixos são, entretanto, a exceção que confirma a regra, já que contribui para a manutenção do sistema de exclusão (Zeni, 2004). A herança escravocrata vem à tona muitas vezes na canção em que a denúncia é justamente a pertinência de uma lógica e cultura esclavagista:

Ei, senhor de engenho, eu sei bem quem você é sozinho ‘cê num ‘guenta, sozinho ‘cê num ‘guenta (Racionais, 2002b).

As classes mais abastadas são retratadas por Mano Brown como o “senhor de engenho”. Apesar do conteúdo humanitário da revolução abolicionista, ela eclodiu muito em razão dos interesses econômicos e ideais políticos da “raça” dominante, que era contrária aos valores do antigo regime. A revolução tinha, na verdade, o objetivo de modificar as condições de organização do trabalho não para transformar o escravo em trabalhador livre, mas sim para substituir a mão de obra escrava pela mão de obra imigrante. Para isso, tanto a ideologia abolicionista, quanto a insurgência dos escravos caminhavam ao encontro dos interesses econômicos e políticos dos grandes proprietários de terra (Fernandes, 2008). A partir do excerto acima apresentado podemos encontrar um pouco daquilo que Lovesey (2017) refere, nomeadamente a necessidade de haver uma descolonização dos ouvidos, das mentes e dos corações. A música pode ainda ser tida como um meio de combate ao mimetismo neocolonial.

Como foi supradito, reitera-se a argumentação de um futuro no qual o passado apenas se repete, sendo que essa mesma repetição se dá na manutenção de um status quo que oprime os sujeitos que vão contra os ditames socialmente impostos e aceitos. Focando nos aspectos de racialidade na presente canção, percebemos como uma análise sobre indivíduos que advém de contextos periféricos deve estar sempre atrelada a um prisma que contempla as dinâmicas de negritude que atravessam a historicidade brasileira. Também se alteia, como nas narrativas subalternas brasileiras, o imaginário de um passado colonial brasileiro, como os engenhos, em suas opressões e dominações. Mais do que analisar um passado objetivo, o ponto das canções é localizado na importância de reconhecer as apropriações dos sujeitos sobre o passado, sobre sua trajetória até esse momento, o lugar na estrutura social e como dialoga, constitui e transforma essa realidade.

3.2. Um palco de disputas

A canção “A Praça” do disco Cores & Valores permite um olhar complexificado sobre o uso da polícia pela via do Estado para controle da população. Esse movimento se torna possível a partir da abordagem do evento vivenciado pelo grupo, em que durante seu show em 2007 na Virada Cultural de São Paulo, evento cultural tradicional da cidade em que são realizadas diversas manifestações artísticas, houve uma intervenção policial logo ao início da apresentação e onze pessoas foram detidas, seis ficaram feridas e duas pessoas foram levadas ao pronto-socorro. Permite-se compreender a proposta de Guerra (2020a), em que o cantar a crise, nesse caso contextualizado na Virada Cultural, não é apenas do evento em si, mas de uma crise social maior, principalmente sobre o modelo social no qual os indivíduos que cantam estão inseridos (García & Feixa-Pàmpols, 2020). A música inicia com excertos de telejornais da época reportando o acontecido, a caracterizando como uma “praça de guerra”, com bombas de efeito moral, uso de balas de borracha e pessoas, desesperadas, tentando sair do local. São também apresentados excertos de reflexões na época pelo grupo sobre como essas intervenções apenas aumentam a “confusão”, machucando pessoas:

Madrugada de domingo, em São Paulo/ “Um show da Virada Cultural terminou em meio a uma gigantesca confusão. Foi a apresentação do grupo de rap Racionais MC’s.”/ “Racionais MC’s, Racionais MC’sRacioRacionais MC’s”/ “Os Racionais MC’s”/ “Foi na Praça da Sé, uma verdadeira praça de guerra. {sirenes} Bombas de efeito moral e balas de borracha. {sirenes} Desesperadas, as pessoas tentaram fugir do confronto.”/ “Vem pra cá, mano! Vem para cá, mano!”/ “Poderiam ter evitado”/ “Até que ponto balas de borracha e gás lacrimogêneo não acabam aumentando a confusão?”/ Vamos pensar com inteligência, o barato é inteligência, certo, mano? Essa correria de um lado para o outro, aí, só vai machucar as pessoas (Racionais, 2014b).

A música se inicia com a letra:

Uma faísca, uma fagulha, uma alma insegura / Uma arma na cintura, o sangue na moldura / Uma farda, uma armadura, um disfarce, uma ditadura / Um gás lacrimogêneo, e algema não é a cura / Injúrias de uma censura, tentaram e desistiram / Pularam atrás da corda, filmaram e assistiram / Pediram o nosso fim, forjaram, olhe pra mim / Tiraram o nosso foco dos blocos e o estopim / Tentaram eliminar, pensaram em manipular (Racionais, 2014b).

Percebe-se uma descrição do aparato do Estado para conter a população, apontando falhas no preparo dos policiais que estão sempre prontos para reagir de forma violenta sobre manifestações populares, e de como esses fatores revelam as falhas na democracia brasileira, que ainda são vivenciados vestígios da ditadura militar, principalmente pela via da coerção militarizada. Na verdade, por meio de A Praça podemos ver os modos como as letras das músicas podem assumir um papel de crítica, mas também podem ser tidas como uma forma de os indivíduos marginalizados resistirem à segregação e à discriminação (Guerra, 2020b; 2020c). Mais do que isso, podemos também constatar que a música, além de se assumir como um modo de resistência, pode ser vista como um meio de sobrevivência (Guerra, 2021a), no sentido em que a participação nessa prática artística, bem como o entendimento da escrita musical como uma forma de exercício de libertação, pode ser vista como o único modo de esses indivíduos conseguirem navegar nos cotidianos sociais, e também fazer face aos malefícios da sociedade. Logo, é lugar de experimentação (Belanciano, 2020): convivem, lado a lado, narrativas pós-coloniais, interculturais, agregadoras, capazes de bailar com as diferenças e criar novas linguagens, novos imaginários e novas experiências; como igualmente, persistem, histórias de novas resistências e conflitualidades (Guerra, 2021b). Processos de revisitação e de reconstrução de memórias que vão tendo cada vez mais voz e representação. É lugar para assumir que a música possui aspectos que são socialmente intransigentes e resistentes e que, mesmo que comercializados dentro de uma cultura de massas, não perdem a sua posição autônoma, o seu potencial subversivo e a sua capacidade de afetar o pensamento crítico da sociedade (Capitain, 2017).

Com a autonomização do campo artístico, Bourdieu (2004) ressalta como isso acaba por gerar uma evolução complexa, principalmente no que se refere aos modos de dominação (Guerra & Silva, 2021). Há uma regressão do uso da violência física em relação a uma progressão de uso da violência simbólica, porém, pode-se perceber os efeitos e reflexos da formação social brasileira decorrente do processo de militarização ditatorial, desde os anos 60, gerando ainda supressões de violência física e simbólica contínuas contra manifestações subalternas, mesmo (e, principalmente) havendo essa autonomia artística. É também possível perceber as dinâmicas de vinculação da violência da estrutura social com indivíduos negros a partir do excerto da canção:

Tentaram e não bloquearam a força da África / Chamaram a Força Tática, choque, a cavalaria / Polícia despreparada, violência em demasia / Mississippi em chamas, sou fogo na Babilônia / Tragédia, vida real, com a mão de um animal (Racionais, 2014b).

O rap, por ser uma forma de expressão também, mas não exclusivamente, brasileira, justifica sua contextualização pela perspectiva do Atlântico Negro de Gilroy (2012), compreendendo o mundo moderno em uma noção transcultural e intercultural a partir da diáspora africana. Permite-se perceber, então, como essas manifestações de negritude e consequente marginalização pelo colonialismo resultam em modos de expressividades comuns independentemente das nações em que estão inseridas (Lovesey, 2017), contemplando o processo histórico pelo qual esses sujeitos estão inseridos. Isso auxilia entender as referências da canção sobre a África e acontecimentos como no Mississippi, permitindo compreender os diversos usos da força da estrutura social sobre pessoas negras. As diferenças entre as populações que permeiam a realidade da violência ficam explícitas na passagem:

Brutal com os inocentes, crianças, velhos, presentes / Ação inconsequente, covarde e desleal / Os moleques com pedra e pau, polícia com fuzil, bomba, carro pegando fogo Porta de aço, tromba, a mãe que chama o filho / Enquanto toma um tiro, alguém perdeu alguém / A alma no gatilho, fugir para o metrô (Racionais, 2014b).

Percebe-se a diferença dos atores sociais presentes na situação, em que a ação policial não distingue a quem está coagindo, e de como é detido apenas pela via do Estado os armamentos do conflito, havendo uma clara distinção da população civil. A diferença dos recursos para embate, como explicitada pela canção, em que “os moleques com pedra e pau, polícia com fuzil, bomba” explicita os processos de modernidade por Giddens (1991). O autor reitera como, por conta de as relações de classe serem incorporadas no interior da estrutura capitalista, há em conjunto o processo de monopolização do controle de meios de violência pelo Estado, havendo a transmissão da violência do contrato de trabalho para as autoridades do Estado. Isso acaba por gerar as cenas vivenciadas no show dos Racionais, em que apenas a força policial detém poder de controle e violência social, mantendo o “bem-estar social” proposto pelas autoridades. A música encerra, novamente, com excertos de jornais relatando o ocorrido, ressaltando o clima de guerra e os feridos. Descobre-se uma ironia: a Prefeitura do município de São Paulo convidou o grupo Racionais para atuar; mas é essa mesma Prefeitura que exerce violências contra os sujeitos convidados, mostrando um Estado que inclui para excluir, e busca suprimir as expressões identitárias dos sujeitos subalternos. A música A Praça permite um olhar irônico, principalmente por finalizar com a fala do prefeito sobre o evento, e revela como o episódio serve como mais uma forma de visibilizar as desigualdades vivenciadas na cidade, sendo mais um dos muitos episódios de violência cotidiana que pessoas periféricas atravessam buscando sobreviver. Podemos arriscar a ir mais longe e a aferir que inerente a esses dois aspetos verifica-se certa lógica de interdependência, uma vez que os Racionais –teoricamente– também precisam de certo apoio institucional, no sentido em que o mesmo também se assume importante para que eles possam exercer uma prática artística. Para todos os efeitos, os Racionais não se assumem como um grupo independente ou underground, mas antes um grupo com bastante visibilidade social e artística. O que se torna paradigmático é que abordam essas temáticas nas suas letras, numa lógica de crítica e consciencialização, mas depois têm a capacidade de ter acesso a outros meios de sobrevivência, diferentemente de um indivíduo que se encontre numa situação de exclusão social.

Esse fenômeno é explicitado por Stuart Hall (2006) e Michel Foucault (2014), revelando a preocupação do “poder disciplinar” com a regulação, em que “a vigilância é o governo da espécie humana ou de populações inteiras e, em segundo lugar, do indivíduo e do corpo” (Hall, 2006, p. 26). Há a busca de regulação da vida dos sujeitos sob controle e disciplina, e isso é possível perceber de forma explicitada no caso dos Racionais, em que a força policial atua exatamente em um momento de expressão de sujeitos marginalizados pela sociedade contra a estrutura social em que estão inseridos.

Dando continuidade, ainda que seja um trabalho mais contemporâneo, considerando os pontos previamente observados na obra dos Racionais, é possível perceber como os relatos do cotidiano são elaborados e expressos pelos sujeitos, gerando documentos da realidade que podem ser vistos de forma processual ao elaborar acerca do desenvolvimento da sociedade brasileira. Mantendo a tônica da violência estrutural, percebe-se como os mesmos sujeitos, seja no local onde moram ou em outras regiões da cidade, são os que sofrem com a violência de um Estado que cria forças estruturais para sua opressão. Essa opressão se dá exatamente em um contexto de denúncia sobre os mecanismos institucionalizados, reiterando a força para manter os indivíduos subalternos na condição sobre a qual foram socializados, como foi apontado nas canções anteriores. Pela via das canções dos Racionais explicitam-se os processos de socialização e manutenção da subalternidade periférica brasileira pela ótica do oprimido.

3.3. Existir para resistir

A canção Capítulo 4, Versículo 3 é iniciada a partir das seguintes estatísticas:

60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial. A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras. Nas universidades brasileiras apenas 2% dos alunos são negros. A cada quatro horas um jovem negro morre violentamente em São Paulo (Racionais, 1997b).

O trabalho de Moreira (2017) reitera como esses dados ainda são atuais, realçando o nome do disco Sobrevivendo no Inferno. É proposto pelo grupo “sabotar seu raciocínio”, identificando em Mano Brown, um dos membros, o “número um guia, terrorista da periferia”, como forma de apresentar a realidade vivida por sujeitos subalternos. Parte-se da posição de não julgar os sujeitos que consomem drogas na periferia, porém comunica-se que essa é uma configuração que gera a morte de sujeitos marginalizados, e que é necessário foco para não cair nas tentações estruturadas por um sistema racista e capitalista. Isso é ressaltado pela passagem:

Irmão, o demônio fode tudo ao seu redor / Pelo rádio, jornal, revista e outdoor / Te oferece dinheiro, conversa com calma / Contamina seu caráter, rouba sua alma / Depois te joga na merda, sozinho (Racionais, 1997b).

A canção surge como uma forma de apresentar modos de sobrevivência vindos de uma realidade marginalizada (Barbosa et al., 2020), complexificando-a, não se restringindo sobre os elementos de violência e pobreza que a permeiam, mas também há o ato de correlacionar com a estrutura maior que permeia o cotidiano, como o consumo de bens materiais no capitalismo. Esse fato é marcado na obra de Jean Baudrillard (2005), em que o consumo deixa de ser vinculado com sua necessidade ou seu uso, mas com seu signo, havendo uma coerção sistematizada que apela para essa forma de consumo, abrangendo todas as classes sociais. O cotidiano dos indivíduos periféricos é relatado ao longo da canção, como condição para a criação de um “monstro”, podendo ele ser alguém que trabalha em carros e continuamente está sujo, alguém que entrega envelopes em baixo do sol o dia todo, entre outras atividades profissionais tipicamente de sujeitos subalternos. Reitera-se a dificuldade de não ir pela via da criminalidade nesse sistema, principalmente em relatos como:

Ser um preto tipo A custa caro, é foda / Foda é assistir a propaganda e ver / Não dá para ter aquilo para você (Racionais, 1997b).

Mas não, permaneço vivo; prossigo a mística / Vinte e sete anos contrariando a estatística / Seu comercial de TV não me engana / Eu não preciso de status nem fama / Seu carro e sua grana já não me seduz / E nem a sua puta de olhos azuis / Eu sou apenas um rapaz latino-americano / Apoiado por mais de cinquenta mil manos / Efeito colateral que o seu sistema fez (Racionais, 1997b).

A canção dos Racionais permite gerar um maior senso de unidade sobre os indivíduos que coexistem na realidade periférica. Seu aspeto “popular” é ressaltado por Hall (2006), pois é uma produção em que as condições sociais e materiais refletem uma classe específica, gerando tensão com a cultura dominante. O autor reflete como “a vida cultural, sobretudo no Ocidente e também em outras partes, tem sido transformada em nossa época pelas vozes das margens” (Hall, 2006, p. 376), salientando como a marginalidade, mesmo que ainda periférica, torna-se um espaço produtivo e ocupa espaços dominantes. Dissolve-se, nesse processo, a noção de identidade nacional coesa, fenômeno contemplado por Hall (2006), explicitando suas diferenças atravessadas por gênero, raça e classe, além de seus processos históricos desiguais. As músicas do grupo podem, então, ser percebidas tanto como um comunicado para os sujeitos que permeiam as outras classes sociais - na forma de um aviso do conhecimento do grupo sobre como a estrutura social é atravessada no cotidiano periférico, sem serem “enganados” mais - quanto um aviso em relação a seus pares - sobre as tentações criadas a partir da sociedade de consumo, que para obter esses objetos, os seus caminhos, muitas vezes, se encontram ou na criminalidade, que gera sua morte, ou na inscrição em si de uma posição de subalterno perante um sistema branco, que degrada o indivíduo. Isso pode ser percebido na exploração de Guerra (2020a), que defende como o rap é uma ferramenta de formação de “cidadãs e cidadãos críticos e participativos, preocupados em mudar a sociedade” (2020a, p. 433). Esse movimento torna-se central para, como o grupo apresenta, ir contra as estatísticas de mortalidade e violência que assolam o dia a dia de jovens periféricos no Brasil. Reitera-se, também, como há a necessidade de coletividade nesse movimento, sendo apoiado pelos “manos”, indo pela via contrária à fragmentação previamente citada por Bourdieu (1999). A produção do grupo permite um olhar que vai além da pobreza e da violência por si só, mas a problematiza e a contextualiza na sociedade capitalista, permitindo explorar estratégias de sobrevivência para quem vive nas margens da sociedade.

Considerando que o Sobrevivendo no Inferno possui uma centralidade no imaginário brasileiro acerca do que é rap brasileiro –seja pela sua presença em um dos processos seletivos de uma das universidades mais reconhecidas no território nacional e internacionalmente (a Universidade Estadual de Campinas, ou UNICAMP) seja pela publicação de um livro com as letras por uma das maiores editoras do país, a Companhia das Letras– as letras do álbum atravessam diversas gerações de rappers ou ouvintes. Esse fenômeno é central, pois pode ser percebido na canção como forma de denúncia, mas também como um meio para a elaboração de lógicas de resistência para todos aqueles que são alvo de preconceito e de discriminação, sendo que a ênfase é colocada nos problemas inerentes a questões raciais no Brasil atual, e ainda historicamente. Compreende-se que as canções, além de analisarem a realidade, permitindo um modo comparativo a partir de um olhar direto da realidade vivenciada, são também exploradas pelo grupo como, naquele tempo espaço e além dele, sujeitos periféricos podem trabalhar a realidade na qual estão inseridos.

4. Racionais para quê?

O presente exercício possibilitou compreender como o trabalho dos Racionais é central na concepção do rap brasileiro. Quer promovendo um caráter narrativo sobre seus discursos a partir de seu primeiro álbum, quer servindo como guias de uma nova geração de rappers em seu último álbum, o grupo está no cerne do desenvolvimento do gênero na realidade brasileira. Além disso, também podemos afirmar que a sua obra possui como intenção real e simbólica a diminuição das barreiras entre os diversos segmentos populacionais, enfatizando uma alteração das representações sociais que persistem em criar divisão entre indivíduos excluídos e não excluídos (Barbosa et al., 2019).

As músicas selecionadas permitem perceber como a produção do grupo atravessa diversos eixos centrais que permeiam a vivência cotidiana dos indivíduos marginalizados pela sociedade, tais como reinserção social, formação identitária, opressão sistemática do Estado e o desenvolvimento de uma ideologia de vida combativa, que permite a sobrevivência nas condições impostas pela estrutura social na qual estão inseridos. Tornase explicito que as músicas são uma expressão central (Guerra, 2020a; 2020b; 2020c) no processo histórico de formação do rap no Brasil, entre produtores e consumidores, quanto como um objeto de análise rico para analisar a vivência de sujeitos periféricos, apresentando em detalhes desde as formações urbanas na sua vida até as diversas opressões no seu dia a dia (García & Feixa-Pàmpols, 2020).

Demonstra-se que estudar os Racionais MC’s é estudar a sociedade brasileira, e como as identidades periféricas comunicam, por via das canções, sua condição, tanto para seus pares quanto para as outras classes sociais. Desenvolve-se no campo da música popular (Capitain, 2017) uma nova identidade marginal, que é complexificada e propõe um empoderamento para quem sofre contínuas opressões diárias, permitindo modos de resistência e novas vivências, contrariando as estatísticas, previamente citadas em Capítulo 4, Versículo 3. É explícito que, com o presente trabalho, se desenhem pesquisas sobre os discursos e os relatos dentro das canções de rap, que se apresentam como um dos campos de conteúdo mais importantes e emergenciais para o campo científico, pois propõem relatos próximos das realidades subalternas e oprimidas na estrutura social, além de potencializar a transformação a partir da leitura que os próprios atores sociais fazem de sua realidade. A partir dessa linha de trabalho, ressalta-se como as análises que possuem como proposta colocar foco na complexidade que atravessa a realidade brasileira devem também contemplar a forma de relato que possui no rap, um gênero que em suas regras próprias permite a crueza da expressão dos impactos do capitalismo sobre sujeitos marginais sem haver interferência da indústria cultural nacional. Os movimentos que soam como profecias na verdade apenas retratam um sistema que se propõe apenas sobre a manutenção de seus mecanismos opressivos sobre a categoria subalterna da sociedade, que possui frestas de expressão por via dessas canções, que devem, por sua vez, ter seu valor ainda mais ressaltado por conta do que representam na realidade em que estão inseridas. Perceber as potencialidades dos discursos que atravessam as letras de rap em uma realidade é, também, mapear o que se mantém na realidade do que está sendo expresso, como as diversas manifestações de violência vivenciadas por sujeitos subalternos. Para evitar um relato presente que se torna uma profecia do futuro, julga-se de imensa importância o reconhecimento e trabalho acerca das demandas sociais expressas pela música que emerge das periferias brasileiras.

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Discografia

» Racionais MC’S. (1993a). Raio X do Brasil. São Paulo: Zimbabwe Records. LP (39 min).

» Racionais MC’S. (1993b). Homem na estrada. São Paulo: Zimbabwe Records. LP (8 min).

» Racionais MC’S. (1997a). Sobrevivendo no inferno. São Paulo: Cosa Nostra. CD (73 min).

» Racionais MC’S. (1997b). Capítulo 4, Versículo 3. São Paulo: Cosa Nostra. CD (8 min).

» Racionais MC’S. (2002a). Nada como um dia após o outro dia. São Paulo: Cosa Nostra. LP, CD (110 min).

» Racionais MC’S. (2002b). Negro drama. São Paulo: Cosa Nostra. LP, CD (6 min).

» Racionais MC’S. (2014a). Cores & valores. São Paulo: Cosa Nostra, Boogie Naipe. CD, digital (32 min).

» Racionais MC’S. (2014b). A praça. São Paulo: Cosa Nostra, Boogie Naipe. CD, digital (2 min).

Biografias

Paula Guerra

É Professora na Faculdade de Letras e Investigadora do Instituto de Sociologia da mesma universidade. Paula é Adjunct Associate Professor no Griffith Center for Social and Cultural Research na Austrália. É Investigadora do Centro de Estudos de Geografia e do Ordenamento do Território e do Centro de Investigação Transdisciplinar “Cultura, Espaço e Memória”. Coordena/participa em vários projetos no âmbito das culturas juvenis, sociologia das artes e cultura, sociologia da música e estudos culturais. É autora de numerosos artigos publicados em revistas como European Journal of Cultural Studies, Journal of Sociology, Cultural Sociology ou Cultural Trends, entre outras. É editora da revista Todas as Artes. Revista Luso-Brasileira de Artes e Cultura. É cofundadora e cocoordenadora da KISMIF Conference/Project.

Gabriel Barth da Silva

É Mestrando em Sociologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto e Graduado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Atua principalmente sobre temas de música popular e estudos culturais.

Pedro Henrique de Oliveira Coutinho

É Bacharel em Direito pela Faculdades de Direito de Vitória (2015), possuindo experiência na área de formação, atualmente trabalhando com tópicos que envolvem imigração.


1 Este artigo foi desenvolvido num quadro de uma investigação liderada por Paula Guerra no escopo do projeto “ARTCITIZENSHIP - Youth and the arts of citizenship: creative practices, participatory culture and activism” (PTDC /SOC -SOC/28655/2017) financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia de Portugal.

2 Os Racionais MC’s foram fundados em 1988 e são situados no espectro do rap. São considerados um dos agrupamentos mais influentes do Brasil notadamente pelas temáticas das suas canções preconceito, desigualdade social, a realidade periférica de São Paulo, entre outros. A importância cultural do grupo formado por Mano Brown, Ice Blue, KL Jay e Edi Rock é reconhecida atualmente pelos meios de comunicação e é tema de teses e dissertações na comunidade acadêmica brasileira.

3 Basta ter como exemplo a intensificação do consumo de gêneros musicais como o rap crioulo, especialmente em Portugal por exemplo. Também no Brasil, as produções de Rincon Sapiência também demonstram estas questões.

4 Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor, que visa a aplicação de medidas socioeducativas junto de jovens tidos como delinquentes.