Ailton Krenak, uma perspectiva crítica da produção da natureza? Pensando a Geografia a partir da obra Futuro Ancestral (2022)


João Alves de Souza Neto

Universidade Estadual de Campinas, Brasil.
ORCID /0000-0003-1720-4221

Larissa Zuque Mosage

Instituto Federal de São Paulo, Brasil.
ORCID 0009-0004-4384-5916

Recibido: 12 de septiembre de 2023. Aceptado: 31 de diciembre de 2023.

Resumo

Neil Smith propôs a produção da natureza, uma categoria que examina como o capital transforma recursos naturais em valor. Este processo possui variáveis históricas e geográficas. Essa lógica global encontra resistência de povos indígenas. Uma resistência brasileira à exploração capitalista gerou uma forma não capitalista de produção da natureza. Ailton Krenak, em Futuro Ancestral (2022), destaca essa resistência. Esta será explorada neste trabalho por meio da crítica de Neil Smith, Antonio Carlos Robert Moraes e Eduardo Viveiros de Castro. Como esse texto de Ailton Krenak se conecta à teoria de produção da natureza? Qual pode ser o papel da resistência indígena na reflexão de caminhos para a História da Geografia?

Palavras-chave: Produção da Natureza; História da Geografia; Ailton Krenak; Epistemologias do Sul; Perspectivismo Ameríndio.

Ailton Krenak, ¿una perspectiva crítica en Nature Production? Pensar la Geografía a partir de la obra Futuro Ancestral (2022)

Resumen

Neil Smith propuso la producción de la naturaleza, una categoría que examina cómo el capital transforma los recursos naturales en valor. Esta lógica histórico-geográfica global encuentra resistencia por parte de los pueblos indígenas. Una resistencia brasileña a la explotación capitalista generó una forma no capitalista de producción de la naturaleza. Ailton Krenak, en Futuro Ancestral (2022), destaca esta resistencia. Esto será explorado en este trabajo a través de la crítica de Neil Smith, Antonio Carlos Robert Moraes y Eduardo Viveiros de Castro. ¿Cómo se conecta este texto de Ailton Krenak con la teoría de la producción de la naturaleza? ¿Cuál puede ser el papel de la resistencia indígena en la reflexión sobre caminos para la Historia de la Geografía?

Palabras clave: Producción de la Naturaleza; Historia de la Geografía; Ailton Krenak; Epistemologías del Sur; Perspectivismo amerindio.

Ailton Krenak, a critical perspective in Nature Production? Thinking about Geography from the work Futuro Ancestral [Ancestral Future] (2022)

Abstract

Neil Smith proposed the production of nature, a category that examines how capital transforms natural resources into value. This global historical-geographical logic encounters resistance from indigenous peoples. A Brazilian resistance to capitalist exploitation generated a non-capitalist way of producing nature. Ailton Krenak, in Futuro Ancestral (2022), highlights this resistance. This will be explored in this work through the criticism of Neil Smith, Antonio Carlos Robert Moraes and Eduardo Viveiros de Castro. How does this text by Ailton Krenak connect to the production theory of nature? What can be the role of indigenous resistance in reflecting on paths for the History of Geography?

Keywords: Production of Nature; History of Geography; Ailton Krenak; Epistemologies of the South; Amerindian Perspectivism.

Introdução

Mulheres, crianças, homens, pessoas de todas as idades se postaram entre as árvores e as motosserras, cercando os caminhos de quem chegava para fazer demarcações e impedindo que o dedo urbano — fosse ele de geógrafos, topógrafos ou sismógrafos — apontasse mais dentro da floresta. Não queriam estacas nem lotes, queriam a fluidez do rio, o contínuo da mata. (Krenak, 2022:77)

Qual é a tarefa do geógrafo?

Ailton Krenak (2022), em seu livro Futuro Ancestral, elabora uma crítica profunda a como a sociedade capitalista vem produzindo seu espaço de vida, sobretudo na produção da natureza. Essa discussão é de interesse dos geógrafos, dada a sua importância histórica nos processos de descoberta e ocupação territorial que vêm sendo empreendidos pelos Estados nacionais desde pelo menos o século XIX. A provocação que esse filósofo faz acerca da tarefa de diversos técnico-cientistas na descoberta de novos recursos naturais é pertinente, sobretudo em um contexto de urgência ambiental. O presente trabalho visa elaborar, em um diálogo próximo com a obra desse autor, uma perspectiva diferente acerca da História da Geografia, especificamente da instância desta na produção da natureza, visando apontar caminhos alternativos para a luta contra a lógica ambiental destrutiva corrente. Diversos trechos do livro supracitado servirão como interlocução à elaboração presente, também servindo como comentários e direcionamentos para o argumento trabalhado aqui. Esse jogo de comentários e interlocução se presta à apresentação de um diálogo entre geógrafos e a liderança indígena. Outras referências se somam a essa atividade. É de fundamental importância a discussão crítica apresentada pelos geógrafos-historiadores Antonio Carlos Robert Moraes (2000, 2004) e Neil Smith (2020, 2021). Com ele dialogamos diretamente para alargar (ou precisar) a perspectiva geográfica em direção à resistência a essa produção da natureza sob o capitalismo. A obra de Eduardo Viveiros de Castro (2011) é essencial nessa empreitada, por apresentar o perspectivismo ameríndio e o multinaturalismo, caminho alternativo que Krenak já aponta. Arturo Escobar (2005) adiciona a isso a questão do lugar para pensar a produção da natureza. Por fim, o artigo se orienta na seguinte estrutura: cada capítulo deste artigo trata de um capítulo do livro Futuro Ancestral, implicando aí questões teóricas e políticas para o posicionamento do geógrafo diante das questões do contemporâneo (Agamben, 2009).

Exposição crítica da história da geografia — futuro ancestral de “saudações aos rios”

Os rios, esses seres que sempre habitaram os mundos em diferentes formas, são quem me sugerem que, se há futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já estava aqui. Gosto de pensar que todos aqueles que somos capazes de invocar como devir são nossos companheiros de jornada, mesmo que imemoráveis, já que a passagem do tempo acaba se tornando um ruído em nossa observação sensível do planeta. Mas estamos na Pacha Mama, que não tem fronteiras, então não importa se estamos acima ou abaixo do rio Grande; estamos em todos os lugares, pois em tudo estão os nossos ancestrais, os rios-montanhas, e compartilho com vocês a riqueza incontida que é viver esses presentes. (Krenak, 2022:11-12).

Há possibilidade de outras histórias da geografia?

A estreita relação entre Geografia e História tem sido objeto de discussão por diferentes autores, que oferecem perspectivas diversas sobre o tema. Para nossa discussão, é importante ressaltar as contribuições de Antonio Carlos Robert Moraes (2000), as quais propõem abordagens que criticam as visões tradicionais entre as duas disciplinas. Na perspectiva tradicional, por um lado, a Geografia é entendida como a base natural intocada na qual se desenrolam as ações humanas historicizadas, enquanto, por outro lado, a História é percebida pela Geografia como uma narrativa do presente, como algo que se põe acima do próprio tempo histórico. Tanto para Moraes quanto para Neil Smith (2021), encontramos a centralidade dessa questão na indefinição dos objetos da História da Geografia, uma indistinção entre as materialidades e os discursos sobre as materialidades, assim como uma indefinição quanto ao que investigar, se as discussões internas dos pensamentos e proposições dos geógrafos ou as ideias que perpassam as geografias contidas fora da ciência geográfica. Smith aponta que a História da Geografia tradicional possui três “D’s”: descritiva, débil e defensiva.

Essa indefinição quanto ao objeto da História da Geografia acaba por afastar essa ciência das problemáticas que ela mesma enfrenta na sua constituição e as responsabilidades históricas enquanto um campo científico elaborado em estreita relação com o desenvolvimento do sistema capitalista. Essa indefinição corresponde a uma irreflexão quanto à sua função social. A configuração de territórios nacionais, as alterações constantes na paisagem e as dinâmicas cada vez mais integradas da produção do espaço geográfico não estabelecem uma relação dialética entre a prática e a teoria das ideias geográficas? Como se posicionar criticamente entendendo que a Geografia é sujeito e objeto de sua própria história e os discursos e as materialidades que a constituem estão em constante movimento? Reduzir a História da Geografia à exposição linear de tradições é limitar a importância que essa ciência tem na história das sociedades e as variedades dos discursos geográficos contidos em diferentes povos.

Cabe questionar como a temporalidade é pensada nessa visão limitante da História da Geografia dos três “D’s”. O tempo se apresenta como contínuo e inelutável, as ideias geográficas representadas são as expressões contidas na evolução constante do desenvolvimento do pensamento geográfico, cujos fins são desconhecidos ou esvaziados de sentido político. Dessa forma, suas narrativas são irrelevantes para além das discussões internas em que estão submetidas essas suas formulações. Esse tipo de representação oculta as vozes dissonantes. Por baixo da neutralidade que pretende carregar, acompanha um sentido de progresso (posicionamento político bem definido), que impede representações geográficas de fora da tradição de serem consideradas.

Enquanto a narrativa tradicional defende a continuidade do tempo e a inevitabilidade do progresso, bem como a neutralidade das representações geográficas (propiciando a profusão de ideologias geográficas), na perspectiva crítica essa concepção sobre o tempo é problematizada e com proposição de novos caminhos. Primeiramente, a noção de tempo como contínuo e inelutável pode ser desafiada pela perspectiva de que o tempo é moldado pelas relações socioespaciais, e que, portanto, não é um fenômeno linear e imutável. Além disso, a centralização da interpretação interna e triunfalista das ideias do pensamento geográfico descontextualizadas de panoramas mais amplos desconsidera a influência de contextos sociais, políticos e culturais na formação dessas ideias. As narrativas geográficas não são apenas produtos de discussões internas, mas são também produzidas por diferentes povos em constante interação com os meios que os abrigam, sobretudo por perspectivas discordantes da concepção hegemônica. A suposta neutralidade da tradição geográfica pode, na verdade, ser vista como uma tentativa de silenciar essas vozes e marginalizar representações geográficas fora da tradição dominante. Em suma, essa suposta neutralidade também pode ser vista como uma forma de ocultar um posicionamento político que favorece uma visão de progresso particular, em detrimento de outras possíveis representações. Portanto, é essencial reconhecer a pluralidade de vozes e perspectivas na geografia e questionar as suposições inerentes à perspectiva tradicional.

Nesse sentido, Ailton Krenak (2022) nos ajuda a repensar as noções convencionais de tempo, espaço e identidade que são intrínsecas à proposta da perspectiva crítica da História da Geografia. O autor faz uma saudação aos rios, estes como símbolos de continuidade e mudança, desafiando a ideia de tempo como uma sequência linear e ininterrupta. Eles sugerem uma concepção cíclica e ancestral, uma concepção que reconhece a presença do passado no presente e no futuro. Isso coloca em questão a visão de progresso que impregna nosso imaginário. Além disso, a ideia de que estamos em todos os lugares, que somos inseparáveis de nossos ancestrais e da terra, desafia as representações geográficas convencionais que separam e categorizam os espaços de acordo com as estratégias intrínsecas à produção capitalista. Em vez de vermos a geografia como uma série de territórios delimitados por uma lógica que inviabiliza as articulações entre os povos e seus lugares, Krenak sugere uma visão integrada, em que todos os seres e lugares estão ligados pelas complexidades e interconexões próprias do mundo natural.

O rio é um caminho dentro da cidade, que permite se deslocar, embora faça tempo que as pessoas tenham decidido ficar plantadas nas cidades. Nas salas de aula, as crianças escutam que uma das civilizações mais antigas do mundo nasceu no delta do rio Nilo, no Egito, cujas águas irrigavam suas margens, propiciando condições para a agricultura — essa ideia civilizatória. Sempre estivemos perto da água, mas parece que aprendemos muito pouco com a fala dos rios. Esse exercício de escuta do que os cursos d’água comunicam foi produzindo em mim uma espécie de observação crítica das cidades, principalmente as grandes, se espalhando por cima dos corpos dos rios de maneira tão irreverente a ponto de não termos quase mais nenhum respeito por eles. (Krenak, 2022:12-13)

Dizem que a quantidade de água que existe na biosfera do planeta Terra agora é a mesma de bilhões de anos atrás, quando se formaram os ecossistemas terrestres que a gente aprecia. Diante desse argumento, alguém pode dizer: “Ora, se a água nunca diminui, qual o problema?”. Acontece que ao transformarmos água em esgoto ela entra em coma, e pode levar muito tempo para que fique viva de novo. O que estamos fazendo ao sujar as águas que existem há 2 bilhões de anos é acabar com a nossa própria existência. Elas vão continuar existindo aqui na biosfera e, lentamente, vão se regenerar, pois os rios têm esse dom. Nós é que temos uma duração tão efêmera que vamos acabar secos, inimigos da água, embora tenhamos aprendido que 70% de nosso corpo é formado por água. Se eu desidratar inteiro vai sobrar meio quilo de osso aqui, por isso eu digo: respeitem a água e aprendam a sua linguagem. Vamos escutar a voz dos rios, pois eles falam. Sejamos água, em matéria e espírito, em nossa movência e capacidade de mudar de rumo, ou estaremos perdidos. (Krenak, 2022:26-27)

O rio que Krenak conclama é um ciclo que flui, sempre presente, sempre em movimento, mas essencialmente o mesmo, ancestral. A vida, a morte e a renovação são interligadas no curso do rio, desafiando a noção de progresso ou regresso. Um mundo em que os rios são suprimidos, retificados, poluídos e contaminados dando lugar às cidades globais e suas dinâmicas é um mundo que assassina o ser rio e expõe os trabalhadores às condições insalubres de existência. É um mundo que reduz a relação entre sociedades humanas e natureza a uma lógica abstrata tida como corriqueira, que nos distancia das possibilidades de intimidade com a natureza. A História da Geografia, imersa na perspectiva plural da dialética entre materialidades e discursos geográficos, compreende diferentes temporalidades e agentes que produzem o espaço. O ato de pensar a História da Geografia não pode ser reduzido a reflexões unicamente ligadas ao passado da disciplina. As cosmogonias indígenas e suas lutas, assim como a luta dos quilombolas, dos camponeses sem-terra ou dos trabalhadores urbanos, não devem ser negligenciadas apenas como meros sussurros localizados ou reduzidos ao plano simbólico diante dos dispositivos capitalistas de produção do espaço, elas apresentam caminhos possíveis para um porvir e se conectam em diferentes temporalidades, em suma, são objetos possíveis para a História da Geografia.

A produção da natureza e a história da geografia — comunhão multinaturalista de “cartografias para depois do fim”

Acontece que, nas narrativas de mundo onde só o humano age, essa centralidade silencia todas as outras presenças. Querem silenciar inclusive os encantados, reduzir a uma mímica isso que seria “espiritar”, suprimir a experiência do corpo em comunhão com a folha, com o líquen e com a água, com o vento e com o fogo, com tudo que ativa nossa potência transcendente e que suplanta a mediocridade a que o humano tem se reduzido. Para mim, isso chega a ser uma ofensa. Os humanos estão aceitando a humilhante condição de consumir a Terra. Os orixás, assim como os ancestrais indígenas e de outras tradições, instituíram mundos onde a gente pudesse experimentar a vida, cantar e dançar, mas parece que a vontade do capital é empobrecer a existência. O capitalismo quer um mundo triste e monótono em que operamos como robôs, e não podemos aceitar isso. (Krenak, 2022:37-38)

Pode a produção capitalista da natureza ser parte da história das geografias?

A relação sociedade-natureza é composta por relações metabólicas mediadas pelo trabalho, que produz a sua existência. Ao longo da história, diferentes sociedades vêm se organizando em diferentes modos de produção para satisfazer suas necessidades. Escassez ou excedente são máximas antagônicas que estão constantemente presentes e expõem as sociedades a formas distintas para seus enfrentamentos e suas possibilidades. Para Neil Smith (2020), o excedente social possui um efeito contraditório para a relação sociedade-natureza, possibilitando tanto emancipação mediante as imprevisibilidades da natureza, quanto uma divisão interna nos grupos humanos. Contudo, mesmo nas sociedades que produzem os excedentes para troca, a relação metabólica entre sociedade-natureza é percebida pelo sujeito que a executa, produto da consciência da prática humana sobre o trabalho e os valores de uso que ele possibilita. Sob o capitalismo, a lógica do valor de troca subverte os valores de uso e os executores do trabalho não se reconhecem mais na relação metabólica entre sociedade-natureza, a lógica que opera é a do constante excedente, não como satisfação das necessidades humanas, mas como valores agregados à acumulação capitalista e suas necessidades.

As diferentes formas de relação sociedade-natureza aparecem como objeto da História da Geografia nas materialidades e nos discursos que produzem, não como formas sobrepostas no tempo visto em linearidade, mas como produções possíveis de diferentes mediações entre sociedade-natureza que coexistem. No entanto, ao passo que se tornou uma relação de produção hegemônica, o capitalismo constitui as relações reflexivas da institucionalização das disciplinas como fundadas e intrinsecamente ligadas à relação sociedade-natureza produzida sob sua lógica, limitando a circulação das relações não capitalistas de produção. Nesse sentido, a História da Geografia uma perspectiva crítica possibilita entender o discurso abstrato da suposta naturalidade do sistema capitalista e se aproximar das diferentes possibilidades de abordagem das relações sociedade-natureza produzidas por outras perspectivas de produção.

Sob o capitalismo, a relação sociedade-natureza evidencia a produção da natureza (Smith, 2020). A relação sociedade-natureza capitalista unifica a natureza como uma unidade disponível universalmente, fonte de recursos utilizáveis para a segunda natureza, a própria sociedade capitalista constituída por suas próprias leis (naturalizadas ou fetichizadas). A natureza passa a ser condição e meio de produção (Moraes, 2004). A sociedade não mais se reconhece integrada à natureza, o trabalho que media essa relação não possibilita mais uma conexão consciente de sua prática, os trabalhadores são despossuídos dos meios de produção e quem os detém encontra-se submisso à lógica da acumulação pela acumulação. Assim, no capitalismo, o excedente é convertido em valor excedente, possibilitando cada vez mais o aprofundamento das forças produtivas e do capital na mão do capitalista. O acesso à natureza é desigual e regido pela propriedade privada, e esse acesso prevê que as únicas coisas que tenham consciência no capitalismo sejam as mercadorias e o capital. Natureza e trabalhadores são reduzidos ao pragmatismo da equação do capital.

Para o aprofundamento das forças produtivas e o acúmulo de capitais na reprodução ampliada do capital, a sociedade capitalista mobiliza teorias e práticas tanto para suas materialidades quanto para seus discursos. A busca pelo desenvolvimento técnico-científico se encontra integrada à lógica capitalista e impregnada nas formulações que propõem base para a separação entre sociedade-natureza. As ciências econômicas, por exemplo, estão imbuídas em relações abstratas, compondo uma série de conceitos que correspondem às expectativas associadas às necessidades do capital. A ideologia da natureza (Smith, 2020), externa e intocável, universaliza as teorias e práticas preconizadas pela lógica da consciência burguesa. O encantamento ou o temor com a relação imediata na consciência sobre o trabalho na mediação sociedade-natureza, existente em diferentes culturas, é substituída pela relação imediata da sociedade com a mercadoria.

Dizer que existe uma produção da natureza é reconhecer que a natureza não é um dado estático, mas é continuamente transformada e moldada pelo trabalho humano. Este conceito sugere que a natureza que experimentamos hoje é em grande parte o produto das interações históricas e atuais entre sociedade-natureza. A constante apropriação da natureza no desenvolvimento das forças produtivas capitalistas traz para a discussão os impactos do trabalho humano para a sustentabilidade dos ecossistemas globais. Neste contexto, emerge o debate sobre as épocas geológicas do Antropoceno e do Capitaloceno. O Antropoceno seria uma época geológica proposta, refletindo o impacto profundo e indelével que as atividades humanas produzem sobre a biosfera, evidenciando o papel da humanidade como uma força geológica significativa. No entanto, críticos ao conceito argumentam que não se trata simplesmente da atividade humana em geral abstrata que é responsável por essas mudanças drásticas, mas sim, de um modelo econômico particular concreto: o capitalismo e seus agentes. O sistema capitalista, por meio da produção da natureza imbuída pelo constante imperativo de crescimento e exploração de recursos, é apontado como o principal motor das mudanças climáticas e da crise ambiental global. Assim, a discussão sobre o Capitaloceno nos convida a questionar e desafiar as estruturas econômicas que moldam nossa relação com a natureza. A dialética, por sua vez, sugere que essas duas épocas geológicas não são mutuamente exclusivas, mas inter-relacionadas. A transformação da natureza pelo ser humano é tanto um produto do desenvolvimento das forças produtivas quanto da lógica econômica que as guia. Portanto, para enfrentar os desafios ecológicos é necessário não apenas reconhecer nossa influência sobre a natureza, mas também a necessidade de redefinir os paradigmas econômicos que determinam essa relação. A partir de uma perspectiva materialista, fica claro que o meio ambiente não é apenas um recurso a ser explorado, mas uma complexa rede de sistemas interdependentes que sustentam a vida humana.

Entre tantos mundos, me sinto especialmente tocado pelas histórias que nos aproximam dos seres invisíveis aos olhos turvos de quem não consegue andar na Terra com a alegria que deveríamos imprimir em cada gesto, em cada respiro. Os antigos diziam que quando a gente botava um mastro no chão para fazer nossos ritos, ele marcava o centro do mundo. É mágico que o centro possa estar em tantos lugares, mas de que mundo estamos falando? Pois quando dizemos mundo pensamos logo neste, em incessante disputa instaurada por uma gestão que deu metástase: o do capitalismo — que alguns já chamam de capitaloceno. (Krenak, 2022:31-32)

Para aprofundar essa prática de experienciar novas possibilidades de mundo, trazemos para a discussão a ideia de comunhão multinaturalista na produção da natureza. O multinaturalismo proposto por Eduardo Viveiro de Castro (2011) suscita um desafio à visão ocidental dominante de que a natureza e a cultura são entidades separadas. No multinaturalismo, a natureza não é vista como um universo físico que é o mesmo para todos os seres, mas como um conjunto de múltiplos mundos e naturezas que são experimentadas de pontos de vistas diferentes por diversos tipos de seres. Cada ser, seja humano, animal, planta ou entidade espiritual, tem sua própria perspectiva ou produção da natureza. Em suma, uma comunhão multinaturalista nessa produção seria uma maneira de interagir com o mundo natural que reconhece a multiplicidade e a interconexão de todas as formas de vida.

Diferente de outros povos nativos daqui, que tiveram uma ou outra reserva instituída pelo governo, os Maxacali passaram os séculos XVII, XVIII e XIX sem lugar para descansar a cabeça. Pois agora decidiram ocupar um antigo território de suas narrativas, e esse povo é capaz de reconstituir toda a fauna e a flora desse lugar onde quase não existem mais bichos e plantas. Em meio ao deserto de pasto em que a região foi transformada durante o século, conseguem ver a floresta e invocar o nome de todos os insetos, os répteis, os pássaros, os animais peçonhentos, as plantas e os fungos que existiam ali e apontar o lugar de cada um na paisagem. Qualquer estudioso ficaria admirado com esse inventário e com a maneira que eles são capazes de restituir a essa terra a presença de seres que já foram extintos: os Maxacali estão ali representando todo esse gradiente de vida. (Krenak, 2022:34-36)

É possível pensar em outras formas de produção da natureza no capitalismo? — sustentabilidade da produção da pobreza de “cidades, pandemias e outras geringonças”

Nossa tecnologia para produzir pobreza é mais ou menos assim: a gente pega quem pesca e colhe frutos nativos, tira do seu território e joga nas periferias da cidade, onde nunca mais vai poder pegar um peixe para comer, porque o rio que passa no bairro está podre. Se você tira um Yanomami da floresta, onde ele tem água, alimento e autonomia, e bota em Boa Vista, isso é produção de pobreza. Se expulsa o pessoal da Volta Grande do Xingu para fazer uma hidrelétrica, mandando para um beiradão de Altamira, você está convertendo-o em pobre. (Krenak, 2022:56-57)

O capitalismo pode ser sustentável?

A produção da natureza sob o capitalismo apresenta diversas contradições irresolvíveis pela dinâmica capitalista. A busca pelo crescimento indefinido promove uma exploração dos recursos naturais de modo que, por um lado, estes sejam consumidos mais rápido que a capacidade terrestre de reposição desses estoques. A própria lógica capitalista não premia investimentos em alternativas mais facilmente renováveis, tornando o papel do Estado necessário para a descoberta de outras fontes de matérias-primas ou energéticas. O descompasso entre a capacidade de consumo produtivo capitalista e a restauração pela natureza daquilo consumido por essa lógica reapresenta a ruptura metabólica efetivada pela produção industrial capitalista. Essa mesma dinâmica pode ser descrita com respeito aos próprios trabalhadores, cujo trabalho é explorado de tal modo que o trabalhador não consegue se recuperar do consumo de seu corpo realizado pelo capital a ponto de desenvolver, ao longo da vida, diversas doenças ocupacionais. Por outro lado, aquilo que é rejeitado ao longo da cadeia produtiva, desde a extração das primeiras matérias-primas até o consumo pelos indivíduos, raramente é reabsorvido pelo processo produtivo capitalista, fazendo com que o meio ambiente tenha de metabolizá-lo à revelia das dinâmicas ambientais já presentes nos lugares, aprofundando certos processos ambientais que poluem e degradam grandes extensões do espaço terrestre.

A arquitetura moderna ampliou a máxima de que a civilização precisa de cimento e ferro. Esse é um pensamento que se relaciona com o mundo nos termos de consumo de matérias não renováveis: usou ferro, acabou; usou cimento, acabou. Se você faz um projeto que precisa de cimento, pedra, ferro, vidro e o escambau, isso é a mesma coisa que usar combustível fóssil. Eu não conheço nenhuma montanha que volte a produzir cimento e pedra depois de extraídos do corpo dela. Se a gente devora montanhas e engole o subsolo da Terra para erguer cidades, o que estamos fazendo, como diria Drummond, é animar a maquinação do mundo. (Krenak, 2022:59)

Um dos grandes problemas atuais relacionados à produção da natureza dentro do modo de produção capitalista é que a distribuição geográfica dos problemas ambientais não é realizada igualmente pelo planeta Terra. Nos territórios centrais do capitalismo, como os EUA, Canadá, Japão, e países da Europa Ocidental, acumula-se muita tecnologia para um desenvolvimento produtivo pouco poluente. Entretanto, suas empresas e parte importante das cadeias produtivas, cujos lucros são acumulados nesses territórios, promovem uma economia extremamente poluente e degradante nos territórios periféricos do capitalismo, fazendo com que exista uma divisão global entre ambientes mais propícios a uma vida saudável e aqueles mais propícios a uma vida doente. Um mesmo modo produtivo, configurações desiguais da produção da natureza e da acumulação de riqueza.

Um modo que se tem adotado de controle da besta poluidora e degradadora que é o modo capitalista de produção da natureza é a reforma desse seu modo de produzir. O desenvolvimento técnico-científico é empregado para dar uma certa racionalidade à acumulação capitalista, fazendo com que seu acumular infinito se torne compatível com a finitude espaço-temporal dos processos ambientais do planeta Terra. Outro modo complementar é limitar socioeconomicamente (pelo âmbito jurídico) esse processo acumulativo capitalista, aumentando o custo de produção que implique, de modo imediato ou mediato, em impactos ambientais relevantes, tornando mais viável (mais barato e lucrativo) o investimento em alternativas.

Uma ideia reguladora dessa perspectiva reformista é a ideia de sustentabilidade. Ela é interessante pois coloca como norma ética da produção capitalista a seguinte máxima: somente extraia da natureza na mesma medida que se seja capaz de devolver a ela ou que ela seja capaz de se restaurar para dar ao capital novos recursos futuros. O desenvolvimento técnico-científico a ser realizado e as limitações socioeconômicas impostas buscam se guiar por esse adágio como meio para evitar problemas ambientais sistêmicos maiores (Acosta, 2016). A grande questão é que os Estados territoriais dispõem de patrimônios naturais diversos e diferentes capacidades nacionais para dispô-los economicamente, variadas concentrações de capital para o desenvolvimento científico e tecnológico e um sem-número de jurisprudências e disputas políticas para impor limites ao desenvolvimento capitalista na questão ambiental e visando a sustentabilidade (Moraes, 2004).

É evidente que a sustentabilidade no capitalismo está eivada de contradições. A concorrência entre capitais não promove aqueles que simplesmente gastam mais para protegerem o meio ambiente. Torna-se mais fácil para diversos capitalistas simplesmente se deslocarem para territórios onde leis e exigências ambientais sejam menos severas e a produção menos custosa e mais lucrativa do que reduzir a sua margem de lucro para se adequar investindo na busca de fontes de matérias-primas e energéticas menos danosas ambientalmente. Isso acaba exigindo dos países acordos internacionais multilaterais, só que países centrais como os EUA podem simplesmente optar por estar fora desse tipo de acordo, além de terem certo contingenciamento com relação às transições de governo, como recentemente ocorreu com os governos Trump e Bolsonaro. Junto à concorrência capitalista, a necessidade de aumentar as taxas de lucro reduzindo o custo da produção faz com que haja um atavismo em relação a uma busca por recursos naturais já empregados e que a redução da poluição e degradação não sejam incentivados. O capitalismo apresenta uma renitente insustentabilidade em relação à sua interação com o meio ambiente.

Do ponto de vista da lógica capitalista sobre o meio ambiente, vê-se dilapidação, espoliação, poluição e degradação para ampliar o acúmulo de capital. Do ponto de vista daqueles que vivem a realidade produzida pelo capitalismo à revelia do capital, vê-se uma lógica que torna o meio de vida impróprio a seu desenvolvimento saudável. A produção da natureza sob o capitalismo promove uma necessária produção da pobreza. Esta produção possibilita a existência de necessidades sociais cada vez mais abertas a serem atendidas pelo mercado, a redução massiva das exigências materiais (se quer cada vez menos) por parte daqueles que mais sofrem com esse empobrecimento, e o aumento do horizonte de lucros a curto prazo por parte dos capitalistas. Em relação ao meio ambiente, a riqueza do patrimônio natural de um território vai sendo sistematicamente dilapidada, em desfavor de sua população nacional, tornando esse território pobre para o avanço de uma outra lógica produtiva por parte de sua população. Para esse território, o horizonte como fonte de recursos naturais lucrativos vai sendo cerrado. A produção da pobreza está vinculada à produção da natureza dentro do desenvolvimento desigual capitalista.

A antropóloga Lux Vidal escreveu um trabalho muito importante sobre habitações indígenas, no qual relacionava materiais e conceitos que organizam a ideia de habitat equilibrado com o entorno, com a terra, o Sol, a Lua, as estrelas, um habitat que está integrado ao cosmos, diferente desse implante que as cidades viraram no mundo. Aí eu me pergunto: como fazer a floresta existir em nós, em nossas casas, em nossos quintais? Podemos provocar o surgimento de uma experiência de florestania começando por contestar essa ordem urbana sanitária ao dizer: eu vou deixar o meu quintal cheio de mato, quero estudar a gramática dele. Como eu acho no meio do mato um ipê, uma peroba rosa, um jacarandá? E se eu tivesse um buritizeiro no quintal? (Krenak, 2022:65-66)

Perspectivismo ameríndio e multinaturalismo — pluriversos de “alianças afetivas”

Só assim é possível conjugar o mundizar, esse verbo que expressa a potência de experimentar outros mundos, que se abre para outras cosmovisões e consegue imaginar pluriversos. Esses termos, usados por Alberto Acosta e outros pensadores andinos, evocam a possibilidade de os mundos se afetarem, de experimentar o encontro com a montanha não como uma abstração, mas como uma dinâmica de afetos em que ela não só é sujeito, como também pode ter a iniciativa de abordar quem quer que seja. (Krenak, 2022:83)

Muitas naturezas, muitas produções da natureza?

Elaborado por Viveiros de Castro (2011), o perspectivismo ameríndio é a ideia de que todos os seres se veem como pessoas e veem outros como não-pessoas. Essa ideia é uma posição gnosiológica advinda desse autor a partir do seu trabalho com os povos ameríndios e como estes observam a si mesmos, outros povos e outros seres em geral, orgânicos e inorgânicos. Nesse sentido, a ênfase não é em um animismo, uma afirmação de que há alma de certo tipo em todos os seres, mas de que na relação global entre os seres há um jogo de perspectivistas de uns sobre outros onde todos procuram afirmar suas próprias e lidar com a de outros. Uma montanha é um ser que impõe aos humanos que a tentam escalar uma relação temporal titânica e permissiva a certas interações com outros seres. Muitos humanos, por exemplo, veem as montanhas apenas como palcos de diversões. Um exemplo clássico, caçadores de javali observam-no como presa enquanto este observa os humanos caçadores como guerreiros. Os javalis se veem em guerra com os humanos. Não é um jogo de culturas diferentes, mas de naturezas diferentes em relação. O perspectivismo ameríndio implica um multinaturalismo.

Para o perspectivismo ameríndio, cada espécie se vê compartilhando uma mesma perspectiva de mundo onde cada indivíduo dela é uma pessoa e outros seres são não-pessoas, podendo ser presas ou predadores, espíritos (de que falaremos adiante) ou artefatos culturais (objetos importantes parte de algum ser). Uma onça vê um ser humano como um porco-do-mato qualquer, enquanto se reputa como pessoa ou gente de sua própria espécie, assim como os seres humanos vêem a si mesmos como gente e percebem onças como possíveis predadores ou presas (a depender da capacidade de um indivíduo humano de enfrentar esse ser). O multinaturalismo implica, portanto, que cada ser se observa como gente e ao visar outra espécie de ser, vise-a como não-gente. Porém, como todos os seres compartilham de forma múltipla um ponto de vista onde se é gente, uma onça, ao predar um humano, é uma gente predando outra gente. Daí o canibalismo figurar como relação central e originária do multinaturalismo.

As relações canibais não se dão somente pela relação carnal entre predadores e suas presas. Para predadores poderem capturar suas presas, há a necessidade da primeira adotar em algum grau a perspectiva da segunda, de modo a ver sem ser visto e a antecipar certos movimentos adversários. O mesmo se dá inversamente, para evitar ser capturado. Porém, nessa relação em que um sujeito predador adota a perspectiva de seu objeto (apresa) para melhor possuí-lo, o sujeito pode se converter em objeto, sendo capturado por ele ao invés de capturá-lo. A natureza comum ao sujeito é submetida a uma outra, a do adversário. Essa nova relação é a relação da gente com o espírito, onde o espírito apresenta a sobrenaturalidade da própria perspectiva, sobrenatureza esta em que a existência dos seres não subsiste. Um caçador humano, ao adotar a perspectiva de um javali que preda, pode acabar adotando para si ser parte da gente do javali, compreendendo os humanos como guerreiros (perspectiva do javali), fazendo com que o caçador se volte contra seus iguais. O perspectivismo ameríndio, nesse sentido, também implica em uma guerra dos mundos, uma disputa por perspectivas de mundo. Como o seu outro é fundamental para o próprio mundo de cada espécie, o inimigo, o adversário que se opõe a esse ser si mesmo, é algo inerente a ele, que o habita. A inimizade é imanente ao mundo.

O multinaturalismo compreende que existem várias naturezas em jogo no mundo. Em uma perspectiva multinaturalista, a produção da natureza pode significar que esse jogo entre seres compreende também uma situação na qual cada um desses mesmos seres pode existir. Estar fora dessa situação significa estar deslocado da possibilidade de ser enquanto tal. A produção da natureza é um conduzir à frente de uma perspectiva de natureza, ao mesmo tempo que é levar adiante a perspectiva de um ser e sua situação de existência. Na guerra dos mundos do perspectivismo, produzir a natureza é submeter uma perspectiva de mundo sobre outras, fazendo com que as outras gentes sejam capturadas por essa natureza e possam acabar vivendo uma vida sobrenatural. A produção da natureza é uma instância do multinaturalismo. No capitalismo, porém, a produção da natureza age como uma força titânica e fanática sobre quaisquer outras perspectivas de natureza existentes, fazendo com que todos os seres sejam engolidos em um mundo de sobrenaturalidade e vivam alienados de suas existências próprias de gente.

Não somente guerra de mundos, o multinaturalismo essencialmente implica abertura para outras perspectivas de mundo. Krenak suscita o mundizar como essa capacidade inerente às relações entre seres, em que cada ser outro não é somente um inimigo potencial, mas uma nova perspectiva de ser si mesmo que pode nascer. Daí a possibilidade de o mundo que é nosso ser afetado pelo mundo do outro, mundo este que encontra o nosso para formar um mundo novo onde o si mesmo e o outro podem ser um nós.

Essa experiência [da Aliança dos Povos da Floresta] durou mais de vinte anos de muita dedicação, até que comecei a questionar essa busca permanente pela confirmação da igualdade e atinei pela primeira vez para o conceito de alianças afetivas — que pressupõe afetos entre mundos não iguais. Esse movimento não reclama por igualdade, ao contrário, reconhece uma intrínseca alteridade em cada pessoa, em cada ser, introduz uma desigualdade radical diante da qual a gente se obriga a uma pausa antes de entrar: tem que tirar as sandálias, não se pode entrar calçado. Assim eu escapei das parábolas do sindicato e do partido (quando um pacto começar a cobrar tributo, já perdeu o sentido) e fui experimentar a dança das alianças afetivas, que envolve a mim e uma constelação de pessoas e seres na qual eu desapareço: não preciso mais ser uma entidade política, posso ser só uma pessoa dentro de um fluxo capaz de produzir afetos e sentidos. (Krenak, 2022:82-83)

A produção da natureza pode significar a produção de uma situação natural tal que outros seres não somente possam existir nela, mas cujo significado seja a confluência de mundos formando uma situação nova, um mundo novo. A produção da natureza sob o capitalismo, pelo contrário, é a tentativa de negação absoluta da constituição de pluriversos. O capital se arma no engajamento com o outro, com a natureza. Na sociedade capitalista, há uma busca fanática pela anulação de outros mundos em favor do mundo do capital. Daí que o fim do mundo sempre parece significar o fim do capitalismo, e o fim do capitalismo sempre aparece como fim do mundo. A produção da natureza pode significar a instituição de pluriversos somente com a revolução na relação que as sociedades humanas estabelecem com a natureza, com o mundo e os outros seres. Nesse sentido, é parte fundamental uma perspectiva revolucionária para essa nova relação.

Ocorre que a palavra política vem de pólis e, quando seres que não são da pólis pensam, podem imaginar outros mundos que não são política, ou, ao menos, não a política vigente. A linguagem é muito determinante nas interações, e tudo que vem da pólis traz a marca de um ajuntamento de iguais, onde a experiência política se pretende convergente. Isso tem animado em mim uma observação: sempre reivindicam a pólis como o mundo da cultura, e aquilo que ficou marcado como natureza é o mundo selvagem. Pois é nesse outro mundo que eu estou interessado, não na convergência que vai dar na pólis. Imagino potências confluindo a partir de um lugar, passando por ele, mas sem ficarem presas ali. (Krenak, 2022:80-82)

O futuro ancestral da produção da natureza em Ailton Krenak — implicação coletiva multinaturalista de “o coração no ritmo da terra”

Essa liberdade que tive na infância de viver uma conexão com tudo aquilo que percebemos como natureza me deu o entendimento de que eu também sou parte dela. Então, o primeiro presente que ganhei com essa liberdade foi o de me confundir com a natureza num sentido amplo, de me entender como uma extensão de tudo, e ter essa experiência do sujeito coletivo. Trata-se de sentir a vida nos outros seres, numa árvore, numa montanha, num peixe, num pássaro, e se implicar. A presença dos outros seres não apenas se soma à paisagem do lugar que habito, como modifica o mundo. Essa potência de se perceber pertencendo a um todo e podendo modificar o mundo poderia ser uma boa ideia de educação. Não para um tempo e um lugar imaginários, mas para o ponto em que estamos agora. (Krenak, 2022:102-103)

Porvir e ancestralidade da produção ameríndia da natureza?

A História da Geografia, a partir da reflexão apresentada por Ailton Krenak e exposta sistematicamente até aqui, é a elaboração dos problemas advindos da relação entre as sociedades humanas e a natureza que fazem ambas serem abstratas entre si. Essa ciência sobre a separação entre sociedades humanas e natureza na constituição do meio de vida dessas sociedades acaba por se afigurar como uma ciência sobre a propriedade privada presente nessa relação e como ela apresenta outros problemas decorrentes da sua reprodução. Nosso filósofo apresenta a possibilidade de uma História da Geografia que pensa como perspectivar um porvir, a partir do que veio antes, onde a elaboração sobre a natureza seja, para as sociedades humanas, um ato reflexivo de trabalhar sobre si mesmo. Nesse sentido, nosso autor acrescenta à história dessa ciência a possibilidade de pensarmos não somente no que se fez ou se faz, mas o que sustenta nosso fazer e o que podemos vir a fazer de novo no mundo.

A produção capitalista da natureza converte tudo aquilo de outro existente em um recurso natural esquadrinhado para a reprodução ampliada do valor. Essa lógica torna tudo aquilo do mundo que não é do mundo capitalista em algo ímpio e imundo, sanitizando de modo assaz cruel e violento. Tornar-se algo importante aqui é ser subsumido à lógica da mercadoria. Se não coopera com a lucratividade, não presta, é descartado. Assim, a produção capitalista da natureza polui e degrada, meio ambiente e trabalhadores, ao buscar torná-los nobres à valorização do capital. Uma luta atual em defesa da natureza somente se pode fazer contra essa produção da natureza que constitui apenas uma natureza para o capital e para mais nada senão ele, uma produção da natureza que a reduz em sua multiplicidade de seres em favor do ser capital.

Alternativas comuns podem ter uma importância local, mas acabam remediando de modo paliativo aquilo que é um problema que resta sem resolução no interior da lógica capitalista de produção: a sua necessidade infinita de consumo dentro de um planeta finito. A busca pela sustentabilidade tem seu papel em frear certos avanços, mas acaba fundamentando um deslocamento da exploração do meio ambiente e dos trabalhadores para locais mais facilmente lucrativos para manter essa lógica reprodutiva. Daí que a sustentabilidade se mantém vazia em seu intento de transformação dessa relação exploratória pois o que se necessita dela é um rompimento e não uma adequação científica.

As mitologias estão vivas. Seguem existindo sempre que uma comunidade insiste em habitar esse lugar poético de viver uma experiência de afetação da vida, a despeito das outras narrativas duras do mundo. Isso pode não ter um significado muito prático para concorrer com os outros em um mundo em disputa, mas faz todo sentido na valorização da vida como um dom. (Krenak, 2022:104)

A produção da natureza sob o capitalismo possui uma característica importante: ela reproduz a desigualdade social e geográfica da própria acumulação capitalista. Isso significa dizer, dentre várias coisas, que ela não é promovida por aqueles que sofrem com ela ou trabalham nela, mas por alguns indivíduos burgueses que se encastelam em poucos lugares do planeta para tratorá-lo por completo. Em cada lugar há necessidades diferentes e relações diferentes entre indivíduos sociais e entre estes e seu meio ambiente. A lógica capitalista procura homogeneizar todas as relações a uma figura que facilite a sua reprodução ampliada, o que leva também a um aprofundamento das diferenças enquanto desigualdades e conflitos. Uma produção da natureza que combata essa lógica titânica e fanática capitalista deve sobretudo levar em consideração as necessidades dos lugares e o conjunto de seres (não somente os sociais) que os compõem. Dos lugares para o global, pode-se conceber uma produção global da natureza que não signifique a redução da diversidade sob a lógica capitalista, mas a implicação da diversidade dentre todos os seres sob outra lógica (Escobar, 2005). Mas essa nova lógica não vem sem luta.

A produção da natureza proposta por Krenak carrega consigo uma implicação dos seres, um mundizar. Nesse sentido, há a necessidade de uma escuta atenta e interessada. Diferente do interesse do capital que se coloca para separar tudo para assim ser melhor consumido na sua sanha de valorização, o interesse aqui na escuta dos outros seres é para uma composição coletiva de uma espécie de música da vida. Em vez de uma ruptura metabólica vinda de cima para baixo, arrasando com tudo e todos, constrói-se uma ritmia metabólica entre os seres ao passo que as sociedades humanas produzem a natureza de seus lugares (Escobar, 2005). O tempo aqui é essencial: pôr seu interesse no ritmo do outro é construir com o outro sem visar rompê-lo. É se tornar um nós com o rio ou com a montanha, um nós com outros povos. Isso clama pelo rompimento com a lógica capitalista.

As crianças indígenas não são educadas, mas orientadas. Não aprendem a ser vencedoras, pois para uns vencerem outros precisam perder. Aprendem a partilhar o lugar onde vivem e o que têm para comer. Têm o exemplo de uma vida em que o indivíduo conta menos que o coletivo. Esse é o mistério indígena, um legado que passa de geração para geração. O que as nossas crianças aprendem desde cedo é a colocar o coração no ritmo da terra. (Krenak, 2022:117-118)

O rompimento da lógica capitalista possibilita decidir pelo entretecimento geral entre os seres. É a constituição de um novo texto para a história das sociedades humanas ao mesmo tempo em que é a formação de uma nova paisagem humanizada no sentido forte e anti-antropocêntrico de humano dado por Viveiros de Castro (2011). A vida passa a estar uma implicada coletivamente na outra. Nasce uma implicação coletiva multinaturalista que possibilita pôr o coração no ritmo da terra. É uma alternativa à lógica capitalista que pode fundamentar um novo horizonte de luta contra a destruição de toda possibilidade de porvir que essa lógica tem posto para todos nós.

Conclusão

Apontar que a lógica capitalista destrói a possibilidade de vida não-burguesa no mundo é algo que vem sendo dito há quase dois séculos ininterruptamente. Manter uma luta contra essa sanha destrutiva é fundamental para apresentarmos resistência a esse processo cujo final é a condenação de toda a vida à morte. A pena posta pelo capitalismo a nós é o peso elevado da pena capital. Tentar domar a besta vem sendo uma possibilidade há muitas décadas, mas isso não tem surtido o efeito desejado pela luta dos trabalhadores, camponeses, povos das florestas, das águas, isto é, daqueles não-burgueses que estão em resistência a esse processo. Urge produzir a natureza a partir das necessidades dos lugares, cada um conforme a sua necessidade, sem rompimento do tecido suave que é a vida. A tarefa do geógrafo no contexto contemporâneo se insere nisso: travar na ciência, e investir também na prática, de perspectivas para a construção de um novo porvir que liberte do cativeiro formas de vida que já encontre um caminhoa ser seguido. Ao modo de dizer de Agamben (2009), podemos dizer que a tarefa do geógrafo é buscar nas profundezas do presente o passado que possibilita o futuro como algo efetivamente novo, é costurar os tempos fraturados, é ser contemporâneo.

#Referencias bibliográficas

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»Smith, N. (2021 [1988]). Por uma História da Geografia: Resposta aos Comentários. Revista GEOgrafias, 17(1), 304-313. https://doi.org/10.35699/2237-549X.2021.34454

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João Alves de Souza Neto / joaosouzacontato@gmail.com

Professor de Geografia do Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo campus São Paulo (IFSP-SPO); Estudante do curso de Doutorado em Geografia do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual de Campinas; Mestre em Geografia do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual de Campinas (PPGGEO-UNICAMP); Bacharel em Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP); Licenciado em Geografia do Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo campus São Paulo (IFSP-SPO); Membro do Laboratório de Epistemologia e História da Geografia do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (LEHG-IG-UNICAMP).

Larissa Zuque Mosage / larissazuquemosage94@gmail.com

Estudante do curso de Licenciatura em Geografia do Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo campus São Paulo (IFSP-SPO).Bolsista de Iniciação Científica do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica e Tecnológica (PIBIFSP) do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP). Membra do Grupo de estudos e pesquisas das relações étnico-raciais no território, arquitetura e sociedade (Gepretas).