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Litígios pueblerinos nos confins do Paraguai colonial: o paradigma do conflito entre reduções jesuíticas

Villages disputes in the borderlands of colonial Paraguay: the paradigm of conflict among Jesuit reductions

 
Litígios pueblerinos nos confins do Paraguai colonial: o paradigma do conflito entre reduções jesuíticas.
Memoria americana, vol. 32 no. 2, (74- 91 pp.), Diciembre, 2024, doi: 10.34096/mace.v32i2.14074. ISSN: 1851-3751
Instituto de Ciencias Antropológicas, Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de Buenos Aires.


Um equílibrio construído no vagar: a terminologia da mudança e o tempo histórico da redução1

Para uma leva considerável de investigadores o projeto reducional, espraíado junto às comunidades do Paraguai colonial, representa um fim e nãoum meio. Nunca se chegou a um acordo claro dos fatores que levaram a orientação; contudo quem interpreta o contexto tendo em conta apenas o resultado não consegue imaginar as dificuldades que precisaram ser colocadas à prova daquelas até a idealização que ficou conhecida (Maurer, 2017). Subjaz, retomando o evento pelo seu começo, é possível entender que pouco a pouco os esforços ambicionaram com algum sucesso confundir os antigos territórios de memória em ambientes que ajuizassem a segurança pessoal dos jesuítas, para com o tempo empregar uma organização que lhes permitisse construir seus vilarejos seguros, tal qual conheciam em terras európeias, contendo limites e impondo demarcações. O que implicou substancialmente na formulação de uma nova apropriação de significados junto a uma paisagem de orientação demasidamente conhecida.

No tocante da questão, que não é meramente convencional tampouco normalizada (Mörner, 1998), o que vamos expor é o entendimento que conseguimos realizar sobre um curso histórico que foi desfeito e interrompido com vistas a consagrar o tempo da redução. Essa significação não se trata de um fato isolado, mas é a demonstração que lugares nativos que outrora somente definiam ancestralidades passaram a servir como territórios de memória para justiticar o progresso de uma “vila de pedra” em detrimento de outra.

Com alguma certeza, em seu significado original prevalece que as ambições colonialistas colocadas à prova pelos jesuítas modificaram substancialmente as concepções do tempo origem. Conquanto o significado desse contexto é muito mais complexo do que aparenta pois o que está em reparo é um processo determinante e de convencimento prolongado que acabou revertendo numa prática comportamental, diga-se um tanto envolvente.

A propósito, o que temos são análises que retratam uma pretensa e bem sucedida “desorientação” por territórios já consagrados desde os idos pré-coloniais e que tiveram de passar por uma série de “recortes” até atingir “medições” que fizessem conferir a identificação enquanto propriedades. Para melhor retratar essa realidade nossa investigação parte da política fundiária e seu desdobramento produtivo e territorial, leia-se de transformação, não como algo que consolidou o propósito de conquista, mas que provocou um reaproveitamento simbólico e de poder sobre lugares e não-lugares que continham alguma importância para os indígenas.2

E se analiso o problema através desse note, é porque as situações de litigios pueblerinos me levaram a conhecer uma recorrência de trato para época colonial: a ausência de validade das sentenças. Esse detalhe por certo se faz constatar em todos os casos que avaliamos. Conquanto, em termos gerais as situações indicam três traços marcantes de entendimento:

Cumpriam funções pontuais;

Expressava mas individualidades mediante o construto reducional;

Acenam tacitamente um lado da história pouco divulgado pelos manuais de época.

A respeito destas implicações, quaisquer que tenham sido os compromissos mantidos nas ocasiões de impasse, não existem, evidentemente, registros que façam conferir uma compreensão simultânea da aplicação de um conflito e a resolução do mesmo junto ao contidiano daquelas comunidades. A rigor, temos investido em situações que levem a compreender a elaboração e a distribuição aleatória de títulos coloniais junto a comunidades organizadas que retrocediam e muito ao tempo das investidas de privilégios.

Ocorre que o contexto em questão combina ambições e contrariedades num mesmo nível de importância. Não obstante, a concepção de muitos jesuítas destacar-se-ia por acompanhar a terminologia territorial ao invés de reconhecer na individualidade daquelas comunidades algo importante paraser mantido. Na esteira disso, todavia, diminuindo a importância dos episódios de desgaste entre reduções, Alberto Armani ponderou que:

A veces surgían conflictos entre una misión y otra, pese a los vínculos de solidaridad que lentamente habían ido ligando a las treinta Reducciones. En general se trataba de disputas concernientes al derecho de disponer de pasturas, o bien, de controversias comerciales. Para resolver estos problemas no era suficiente el juicio de un solo sacerdote, de modo que se recurría a una comisión de misioneros preferiblemente residentes en poblados muy distantes de los que estaban involucrados en el pleito. En los casos más importantes -por ejemplo cuando se trataba de discusiones de límites- la comisión estaba presidida por el superior de las Reducciones. Al igual que en el campo administrativo, en el judicial los misioneros actuaban dentro del marco de las leyes españolas (Armani, 1996: 109-110).

Em regra e ao contrário do que atestou Armani, compreendemos que a Companhia de Jesus tratava deresolver os conflitos de modo costumeiro sem fazer uso direto de referências que pudessem expor uma que outra falha de organização perante a corte espanhola, no que pese a validade documental e as garantias que de fato estavam a promover. À risca dos casos que serão apresentados na íntegra, é fácil constatar que os personagens envolvidos reconheciam estarem desempedidos de fazer tal aproximação para com a vossa magestade espanhola. E os motivos para isso foram muitos.

A contar, os fatos que usamos como exemplos sequer tiveram uma legislação específica de modelo para acompanhar. Nem mesmo a tão recorrida Leis de Indias serviu de embasamento para tais fins. Na contradição disso e salvo alguma discordância em relação ao que afirmamos; em última instância as decisões acompanharam as determinações do colégio máximo de Córdoba. E numa rara demonstração ao que parece de exceção, foi necessário recorrer a um aconselhamento de Roma.

Destarte, a situação que tem se mostrado mais recorrente nos documentos que analisamos indica que as disputas entre “pueblos” se davam de modo oficial perante um Colegiado.3 E a este colegiado competia a responsabilidade de acatar e oficializar as decisões.

Isso equivale dizer que o contexto, em termos mais precisos, alinhava-se a uma série de curiosos inconformismos que precisavam de alguma forma se fazerem conhecidos em formato de defesa. Conquanto os três casos que reservarmos para esse artigo, e por conseguinte as diferenças contidas ao conteúdo, não significa propriamente que toda a divergência revertesse numa sentença definitiva e irrevogável. Ao contrário disto, conseguimos notar que raras foram as vezes em que não foi preciso revisar o conteúdo daquelas sentenças. O contexto no que pese o aproveitamento aser acompanhado remete a uma junção complicada de manifestações. Ao passo que algumas atitudes permitem comparações, outras nem tanto.

No final, os impasses eram provocados em decorrência de um interesse em detrimento de outro(s). Ocorre que as disputas não só condicionavam um processo de organização por sobre antigos territórios como deixa entender que as disputas procuravam melhor definir as identidades locais. Do ponto de vista histórico essa situação longe de uma excepcionalidade não exclue, apenas supõe um alusivo e recorrente entendimento que nos instruí a saber que “por parte de un pueblo de una tierra o un derecho común por costumbre desde tempo inmeroriables a menudo no expresa un hecho histórico, sino el equilibrio de fuerzas” (Hobsbawn y Ranger, 2002: 8).

Litigio entre San Luis Gonzaga e San Miguel

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A Província do Paraguai e localização San Luis Gonzaga e San Miguel. Fonte: Pinto e Maurer (2014).

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A situação que passamos a discorrer trata-se de um documento redigido pelo padre Provincial Francisco Avendrano. Na ocasião, lhe ficou reservado traçar em linhas informações sobre uma indisposição que envolveu as reduções de San Luiz Gonzaga e San Miguel por conta de uma contagem simples de cabeças degados mas queno seu final acabou recebendo a importância de “estância”.

Por algum motivo, o religioso que redigiu o documento não mencionou a data que demandavam as avaliações que fazia; embora, por conseguinte, tenha feito ressalvas referentes aosanos de 1696 e 1697. O teor histórico mantido na fonte primária acusa um desconforto pessoal do mesmo para com o padre Anton Sepp, que para a época do registro respondia pelos intentos miguelistas.

A propósito, seus registros precisaram conferir a contagem conturbada de gados que no final das contas acabou por conferir uma incompatibilidade em torno de cinco mil cabeças que o então padre Anton Sepp na condição de padre consultado julgava serem de San Miguel e não de San Luis Gonzaga. O problema por sua vez apresentou-se demasiadamente confuso. Vejamos na íntegra o desconforto manifestado por Avendranojunto ao contexto:

Por quanto el Pe Antonio Sepp supone algunas falsedades enla demanda ql pone contra las bacas de San Luis, suponiendo ql sinco mil de ellas son de San Miguel; Respondo en esta declaracion al Primer ponto, ql dice, ql antes de partirme del Paraguai embiei al corregidor a contar dicho ganado quien hallo solamente 30 mil Exa. Respondo ql esto es falso porql no embicadicho corregidor, a contar las, ni fue necesario porql ia el Pe Joan de Yegros las avia contado, i hallo 42 mil Bacas, fuera del terneras e; como consta dellos villetes del Pe, i el Pe Domingo Calvo dice oio decir lo mesmo el Pe Joan de Yegros, i en San Luis estan los 4 Procuradores i 4 Capitanes - Baqueros, ql en Compa del Pe Joan las contaron i dicen lo mesmo [...]4

Como podemos verificar existiu um desentendimento de versões, tanto por parte de Anton Sepp, quanto por parte de Avendrano que acusava ser falsa a narrativa do primeiro. No apanhado geral do episódio eis que constatamos um Avendrano especialmente contrariado e dispostoa contrapor o entendimento mantido por Sepp, pois o mesmo insistia em afirmar que o próprio Padre Provincial havia determinado a um corregedor [sic] o reconhecimento dacontagem; chegando ao número de somente 30 mil cabeças de gado.

A reação por parte de Avendrano foi imediata, pois conforme acusou desconhecia o fato de ter enviado qualquer corregedor que fosse para tal empreitada, uma vez que sequer era necessário tal desprendimento haja vista que o padre Joan de Yegros em outra ocasião [sic] já havia contabilizado 42 mil cabeças. Ainda descontente coma versão apresentada por Sepp, Avendrano traz a conhecimento o envolvimento direto de outros personagens. Estes seriam os casos do padre Domingo Calvo, que teria “ouvido dizer” de uma contagem para lá de controversa realizada na redução de San Luis conforme solicitação de um padre “inexperiente” (Antonio Ximenez) e que não só envolveu Yegros como o mesmo chegou a ser acompanhado por mais doze indígenas. O curioso é que essa comitiva ficou lembrada por ter entre os seus membros “um cantor velho e cego que sequer sabia contar”. De modo a não prejudicar a lógica em que ficou confiado o documento, nem mesmo falsear sobre os assuntos relatados, eis a ilustração do conteúdo queacabamos de reportar:

[...] quien embío a contar las bacas fue el Pe Antonio Ximenes, i no embio si no es 12 indios, i al corregidor, i aun cantor viejo cegaton ql ni sabe contar. Por el poco conocimiento, ql tenia el Pe Antonio Ximenes delos indios i de contar bacas, i asi dice el corregidor, i el cantor viejo, ql como las bacas pasavan de 40 mil nolas pudieron contar todas, ni hacer rodeo, por aver ido solo 12 indios, i ql asi dixeron al Pe Antonio Ximenes 30 mil ho se peca tu ete el Pe entendio ql eran solas 30 mil esto dice el corregidor, i las ql fueron con ell.5

Não é pois de admirar que as situações de conflitos não só enfraquecerama orientação indígena como acabaram por condicionar um novo poder ao uso terrificante daquelas comunidades. De qualquer forma, ao final da curiosa contagem, os envolvidos chegaram a conclusão que tal montante passava de 40 mil cabeças de gado, embora não tivessem precisão sobre o número exato haja vista que não havia conseguido “hacer rodeo” -apartar o gadopara a contagem-. Verificamos ainda que o problema acabou sendo repassado a Ximenez, e aquele uma vez já ter tomado conhecimento se apresentou receoso dos números apresentados e persistiu ao erro quando resolveu registrar somente 30 mil cabeças no livro de contas do povo. Registro este que supostamente não corresponderia com a verdade, uma vez quando conferida e comparada a partir do livro de contas do padre Provincial que naquela altura se encontrava no acervo de San Nicolás. Conforme Avendrano por intermédio do registro se conferia que já na primeira visita do padre Simon de Leon, em 7 de Abril de 1696, ficou constatado no livro de registro a quantia de 40 mil cabeças de gado. Uma segunda visita aconteceu no dia 28 de Agosto de 1697 -um ano após a primeira contagem- quando se verificou um aumento de 14 mil cabeças de gado, consagrando ao total 54 mil cabeças de gado -fato que desmentia e muito a versão das 30 mil cabeças- advertida tanto por Sepp quanto por Ximenez.

Mas a natureza do contexto mantém-se integrado a uma variedade de significados que o tornam ainda mais intrigante. Na seqüência da exposição, o que temos é um Avendrano especialmente atônito em meio a tantas distorções de sentido. Entretanto e convencido das informações que mantinha em relação ao episódio e acintosamente interessado a desacreditar a versão apresentada por seus colegas de batina que apresentavam números tão destoantes do registro oficial, eis que Avendrano aproveita da ocasião para fazer referências diretas ao problema chamando vistas para a gravidade que envolvia ocaso:

[...] pues donde esta lo ql dice el Pe Sep, i el Pe Antonio Ximenes delas 30 mil Bacas qdo consta todo lo contrario; fuera desto las 42 mil Bacas se trajeron despues dela ultima visita, ql no esta todavia escrito en el libro, i asi dos falsedades suponen las partes i en esta suposicion falsa, de ql dexe solas 30 mil antes de al Paraguai aviendo dexado 40 mil ql las conto el Pe Joande Yegros; funda sus argumentos falsos el Pe Sep, por escribir todo en una suposicion falsa.6

Lúcido do que escrevia, Avendrano traduz o processo que ele próprio estabeleceu quando da época que tomou para si o problema. E ao comparar sua investida coma suposta inépcia de Antonio Ximenez quando em condições semelhantes; Avendrano narra algumas diferenças no seu procedimento que acabarão se fazendo decisivas ao desfecho que se viu envolvido. Em línea, esforços pessoais distintos acabarão por desvirtuar o número exato das cabeças de gado que estariam a faltar ao povo miguelista:

Y asi lo qe dice la parte qe embie yo indios a contar los ganados, embie a 50 indios con 4 Procuradores como lo avia de aver hecho el Pe Antonio Ximenes i no lo hiso por lo qual no se puedo contar todo el ganado por averse ya al sado los tienes enlos montes de San Cosme i San Damian, i aviendo contado todo el ganado hallaron 36 mil seiscientos, i 35 bacas desto hace Argumento la parte diciendo como no hallaron 32 mil, o 33 mil i hallaron 36 mil luego son las qe faltan a San Miguel […]7

Essas condições demonstram, dentre outras coisas, que a transformação da sociedade reducional não se deu apenas ao impulso de dominar territórios e produtos alheios. De qualquer forma, as categorizações aparentemente definitivas ao âmbito colonial revelam a desestruturação do meio nativo. E nesse âmbito, entre certo ou errado, foi instaurado um ritmo próprio e basicamente lento de transformação. Ora mantido pormeio de um desprendimento originário, ora condicionado em detrimento de uma “linguagem de convívio” que parece ter sido encantadora ao revés do improviso.

Porquanto, inesperadamente quando tudo parecia estar se encaminhando para uma conclusão definitiva do caso eis que Avendrano acaba revelando ter feito uma contagem “aproximada” dos valores que também estava ser eferindo:

Respondo a esto ql como las Bacas eran 42 mil i destas se trajeron en diversas ocasiones 4 mil como consta del libro delas cuentas. fuera desto las muertas, i perdidas enla imbernada son mil trecientos i 35; i asi sacando de 42 mil sinco mil trecientos i 35; que dan 36 mil seiscientos y secenta i sinco Bacas; i esta es la La rason de no averse hallado 33 mil; o 32 mil com todo esto tengo ia respondido a la parte.8

Não se contendo daquilo que era conhecedor Avendrano faz uma revelação indireta sobre Anton Sepp, que naquela altura estaria insinuando que a redução de San Luis Gonzaga mantinha sob seu domínio três estâncias de gado; versão que Avendrano rebateu categoricamente, acusando que ao tempo dos fatos aqui narrados, e que já deduzimos ter acontecido entre os anos de 1696 e 1697, a redução de San Luis não possuía uma estância que fosse, uma vez que San Borja e La Concepción juntas haviam lhe retirado 8 léguas de terra restando para os luisistas apenas quatro léguas.9 Essa situação não só desfez dos poderes do padre Thomas Donvidas, que noutra época [sic] já havia lhes concedido por intermédio de títulos doze léguas de campo para que pudessem comportar o gado numa invernada e não numa estância como bem queria afirmar o seu desafeto.

Com o tempo a revisão pesou sobre o povo de San Luis Gonzaga, que não só precisou desfazer-se da invernada que detinha como que acabou por condicioná-lo a classificar o que entendiam por estância, e passaram a confiar, “sino los yerbales, como lo tienen todos”.10 Motivado a desfazer do equívoco, Avendrano concluí que ao contrário do que estava posto erroneamente, não era a redução de San Luis que ostentava quatro estâncias de gado, mas sim San Miguel. E que uma vez confirmada a pretensão de Anton Sepp, estaria a confirmar-se na quinta estância. De modo a evitar isso era necessário observar a seguinte realidade:

San Miguel si tiene 4 estancias, i conla ql pretende seran 5.La 1ª esta entre el Piratini i el Yyuimini, i tiene 12 leguas como consta de um mapa de San Miguel hecho por los indios. La 2ª estancia es la del Iaguaruí, i tiene 8 leguas donde tube yo 50 mil bacas. La 3ª la dez hanenda i hacia el Caaiobai, i tiene 5 leguas: la 4ª La inbernada, qe tiene detras dela Sierra aquien no se há tocado; la 5ª esta ql pretende tener i quitar a San Luis.11

A disputa de narrativas, por certo, não se encerra na presente abordagem, conquanto resta-nos por ora refletir sobre o contexto em questão tendo em conta que um ato de discordância dentre os religiosos, que respondiam por aquelas comunidades longe de qualquer estranheza, foi uma afirmação sobre os anseios e conquistas que cada qual ambicionava atingir. Cumpre dizer ainda que a convicção de conquista mantida por ambos no episódio foi dada em detrimento de uma uniformidade de questão que mais indicaria um novo propósito territorial e também produtivo.12

Por conseguinte é praticamente impossível de ser negado que a conquista aos tratos da sociedade reducional compôs uma sucessão de eventos que acabavam por impulsionar junto as sociedades originárias uma condição existencial e direta de interromper o passado pré-colonial a partir de escolhas e determinações que passaram a conduzir. Numa última análise o pleito que envolveu San Luis e San Miguel não representa apenas um interesse por sobre gado, estâncias ou terras, mas demonstra a cargo disso que aavaliação sobre aqueles também correspondia a uma junção de propósitos jocosos, embora fixados a realizar uma conjuntura em construção.

Litigio entre Los Santos Martyres e Santa Maria La Mayor

Mesmo em seus melhores momentos, a transformação colonial colocada a prova pela Companhia de Jesus em solos do “primeiro Paraguai” de modo algum se fez pacífica. A partir desse argumento refaço a problemática trazendo à luz as impaciências que acompanhavam o curso de envolvimento daquelas sociedades tradicionais que tiveram suas trajetórias de convívio interrompidas e que por continuo disso acabaram condicionadas a um convívio reducional.13

Entretanto, não teria outra pretensão que não a de situar uma maior visibilidade para episódios que exponham o desgaste a uma paisagem por demais contemplativa quando ainda fantasiosa se avaliada isoladamente pela descrição do jesuíta. Isso equivale dizer, que o contexto em termos mais diretos, provocou um aprimoramento recorrente de disputa que acabou por priorizar localidades que pudessem ser definidas, ocupadas e defendidas simultaneamente. E essa característica, por sinal, é o que melhor retrata o caso de conflito que envolveu as redução de San María La Mayor e Mártires.

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A Província do Paraguai e localização Santa María La Mayor e Mártires. Fonte: Pinto e Maurer (2014).

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Como em boa parte dos documentos que retratam as situações de conflitos pueblerinos, o fragmento que dá evasiva ao contexto conta com as suas próprias imprecisões. Em especial, chama atenção pela ausência da firma de autoria e a data em que foi formulado. Conquanto, pelo teor do conteúdo é possível atestar que a normativa foi elaborada pela pluma do padre Provincial de 1711, Antonio Garriga. Trata-se de uma espécie de contraposição do religioso que exigiu um esforço por parte das curas responsáveis das reduções com vistas a transmitir a recomendação que fazia. Conforme descreveu, houve uma primeira sentença que ficou confirmada perante o reconhecimento dos padres Juan de Anaya e Joseph de Intausalt em 30 de novembro de 1710. Essa sentença voltou a ser revisada pelo próprio Garriga em 19 de Janeiro de 1711. A solução na época ordenava que a redução de Martyres restituísse a quantia de 10 mil cabeças de gado ao povo de Santa Maria. A redução de Los Martyres recorreu da decisão. E, ao que parece, acabou representando uma nova defesa que dava conta de lembrar uma transferência de 140 cabeças de gado em favorecimento ao povo de Santa María.

Pouco a pouco, a contrariedade pessoal de Antonio Garriga perante a versão dos primeiros vai ficando evidente, ao ponto que chega a fazer lembranças que a quantia mencionada seria muito menor e sem contar que já teria sido devidamente reconhecida conforme declarações de três textos espanhóis [sic], dos quais registravam-se apenas quatorze cabeças de gado.

A respeito disso Garriga, assegura a elaboração de uma segunda sentença que acabou desconsiderada pelos índios de Martyres, embora confirmada em presença dos padres Cristobal Sanches e Diego de Harze em 24 de Abril de 1711. A propósito, é o próprio Padre Provincial que alega ter confirmado a sentença em 17 de Agosto do mesmo. Essa nova identificação levou a um “breve reajuste de contexto”: que determinava que a quantia de gados fosse compreendida junto de uma restituição das terras e chácaras pertencentes à Santa Maria.

Conforme entendemos, o povoado de Martyres não recebeu muito bem a nova orientação, a o passo que preferiu formalizar uma nova representação visando a correção do suposto equívoco. Convictos a reverter às circunstâncias impostas eis que os martyristas passam a julgar suas ações de modo a fazer valer a representação de dois títulos de terras que lhes favoreciam e que, por conseguinte indicavam uma anuência em sequência de dois padres Provinciais e o reconhecimento de um Padre Superior.

A exemplo de outras passagens que desconheceram ou não privilegiram autoria de importância, o que temos em conhecimento são estratégias que cada comunidade conseguiu construir em defesa própria. Porém, houve, também, uma tentativa muito bem elaborada de contextualização do problema quando ficou constatado que o contexto histórico antecedia significativamente a origem contextualizada por Garriga.

Ao contrário dos parcos argumentos que apresentou Santa Maria, a memória nativa de Martyres reportava aos registros que teriam sido feitos pelas plumas de Andres de Rada (1666-1669), Augustin de Aragon (1669-1672) e com uma anuência Diego Suarez, então Padre Superior da época que supostamente reconheceu a validade do contexto. O desfecho, entretanto, parece que não perdurou por muito tempo, uma vez que levou a realização de uma terceira sentença.

Acompanhando atentamente e refazendo a projeção da confusão, dá para dizer que Garriga rejeitou as sentenças anteriores em detrimento desta terceira, pois através da mesma não se notava apenas a confirmação das chácaras e de terras; se conferia por contínuo o reconhecimento de um sítio que se encontraria nas proximidades de Martyres. As informações deixam entender que o território em questão não só ficou a cargo daquela redução, como lhe cabia permitir ou não o acesso ao suposto local passível inclusive de “reter e não restituir as chácaras opostas”, o que bem sabemos era uma situação inviável uma vez que o convívio entre limites não se garantia apenas pelo simples cumprimento de uma sentença, em que pese, no viver de aplicação dependia muito mais da vontade exercida pelos povoados.

Conquanto, ao meandro da narrativa eis que Antonio Garriga acaba deixando revelar a sua incompatibilidade pessoal junto aos colegas Provinciais que haviam lhe antecedido no posto e que outrora se fizeram conhecedores do conflito na íntegra do evento. Em um tom de total reprovação o religioso reforça uma determinação expressamente taxativa:

[...] siendo asi q con bastante claridad con estando aver sido esa mi mente, ni tanpoco el que se restringiessen los terminos delas tierras de Sta Maria no entendiendolas como deverion entender con la amplitud longhitu y latitud que expressan dhos titulos del P. Provl. Andres de Rada disposicion del P. Supr Diego Suarez, y P. Provl. Agustin de Aragon y quando ubiesse alguna duda ensu intelligencia se devra esperarmi declaracíon sin entroducirse en dhas chacaras usurpando lo que no era seus y para que con semejantes excepciones dilatarlas no se impida el dar cumplimiento alo que contataron juizes esta determinado y sentenciado.14

A contar desse argumento, podemos ter uma visão mais clara do conteúdo que desconfortou Antonio Garriga, pois o mesmo discordava das informações da localização e das coordenadas de limites impostas à redução de Santa Maria. Não obstante, entre as supostas dificuldades e suas possíveis tentativas de entendimento o que fica demonstrado é uma excessiva ansiedade por parte do Padre Provincial em não só estabelecer uma decisão derradeira ao episódio, como fazer valer a sua autoridade junto a um caso que conforme descreveu se arrastava por anos.

Naturalmente, a explicação se reduz a um contexto de poder onde a razão eexecução necessitavam ser acompanhados sem haver qualquer desgosto que fosse.

Entre outras coisas, isto significa também, a uma determinação funcional e retrativa que ordenava ao povo de Martyres restituir 10 mil cabeças de gado para o povo de Santa Maria. Nesta circunstância a advertência de restituição deveria acontecer em dois momentos: uma metade para o ano presente da análise (1711) e a outra metade para o “venidero”. Ainda, numa eventual disponibilidade o povo de Martyres estaria autorizado a comprar dos “povos debaixo” os gados que viessem a lhe faltar.

De modo a evitar maiores indisposições o narrador enfatiza que solicitou aos povoados que os mesmos se encarregassem de selecionar de modo proporcional o número de indígenas a transportar os gados. O que deixa supor que as redeuções teriam alcançado um consenso de entendimento. A despeito disso, houve tempo para Garriga incluir um novo adendo para o povo de Martyres, que o mesmo viesse a conceder em permuta outras terras ou montes tão equivalentes em quantidade e qualidade tais como os que a redução de Santa Maria La Mayor outrora demonstrou possuir.

Da investigação que realizamos não nos deparamos com qualquer documento que fizesse conhecer quão frutuosa tenha sido a redução em questão. Porquanto, temos segurança suficiente para situar que as decisões de Antonio Garriga tocavam deser acompanhadas pelos padres Cristobal Sanchez e Diego de Harze -então curas principais daquelas comunidades-. Aos mesmos ficava reservado de supervisionar e colocar em execução os procedimentos aclarados. E em caso de nova discórdia poderiam requisitar o auxílio do padre Domingo Calvo, pois este já estaria sobre avisado a encontrar os lindeiros das chácaras dos povos em exposição e fazer valer a devida igualdade de permuta.

Tecidos a partir dos entendimentos firmado, era preciso afastar qualquer margem de interpretação, o ponto fundamental aqui é o seguinte: demonstrar que o “Novo Mundo” -o reducional- também foi feito por reprovações e insucessos que precisaram ser contornados em horizontes de pertencimento antigo.

Como estou procurando demonstrar, certamente não se trata de um desdobramento definitivo. A despeito disso, é até razoável trabalhar com a possibilidade de terem existido mudanças ainda mais profundas das que ora ficam apresentadas. Imaginamos, inclusive se tratar de um momento transitório que exigiu um tempo de atenção mais ordenado das coisas. De mais a mais, aquelas noções precisaram ser construídas numa confirmação histórica, sobretudo, num “refazimento” de questões vinculadas a um passado origem que foi por todo modificado desde que confirmada a presença da Companhia de Jesus em confins do “primeiro Paraguai”.

Ao mesmo tempo, é bom que tenhamos bem esclarecido o fato retórico dos motivos que levaram a tal impasse pois ao fundo da questão o que temos é uma tomada de consciência demasidamente controvertida em fingir situações e forjar outras alternativas de entendimento por territórios já consagrados. Repreia-se, contudo, mesmo terminado o exame da divergência que as dificuldades se mostravam recorrentes. E distingui-las nesse enlance histórico é expressamente difícil, uma vez que por menores que tenham sido os resultados, se fizeram “siempre susceptible de mutaciones bruscas” (Gruzinski, 2007: 358).

Litígio entre San Miguel e Nuestra Señora de Loreto

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A Província do Paraguai e localização San Miguel e Nuestra Señora de Loreto. Fonte: Pinto e Maurer (2014).

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Nas diversas fontes examinadas, é razoável pensar que o documento que atesta o conflito entre San Miguel e Nuestra Señora de Loreto tenha sido elaborado para registrar e arquivar um parecer definitivo sobre um território que compreendia as mediações do Yberá. O conteúdo foi elaborado em Candelária no dia 22 de Janeiro de 1713, por intermédio do padre Provincial Antonio Garriga. A decisão de Garriga recaía para fatos já:

[...] expresados em los titulos, que dhas partes han apresentado; y los pareceres, y sentencias que dieron los PP.s Christobal Sanchez, Diego Garcia, y Sebastian Ramirez Juezes nombrados para decidir dha diferencia delos quales concordaron em dhos pareceres los Padres Christobal Sanchez, y Sebastian Ramírez declarando pertenecer dhas tierras al Pueblo, y Doctrina de Loreto y no al de S. Miguel.15

É evidente que decorridos três séculos do registro, e hoje contando com os recursos tecnológicos de fácil aproximação (GPS, Google Earth), é possível concluir que os miguelistas foram um tanto pretensiosos nas reivindicações que faziam, uma vez que o território em questão se apresentava originalmente mais próximo da redução de Nuestra Señora de Loreto.

Conquanto, não parece ser uma novidade advertir que as percepções dos povos originários eram mantidas em decorrência da longa duração.

Mas se ao passo do que conhecemos nos afastarmos, por um instante que seja, daquilo que já se encontrava consagrado (Yberá), o que há é uma situação de litigio que aconteceu em consequência de um território que oferecia uma diversidade de recursos.

Falta-nos, porém, admitir o evento comparando-o por intermédio de fontes que venham a ratificar os argumentos e os títulos que foram apresentados por aquelas comunidades. Da mesma forma que carecemos conhecer as versões redigidas pelos juízes que averiguaram o evento, no caso os padres Christobal Sanchez, Diego Garcia e Sebastian Ramirez. Dito de outra forma, estas comprovações ou a falta delas, por mais vagarosos que tenham sido os cumprimentos daquelas sentenças, é fácil perceber que os excessos não se desfaziam de modo algum.

A propósito, a série de litígios em que foi envolvida a redução miguelista demonstram que a comunidade procurava fazer das situações de conflito oportunidades para reaver antigos privilégios ou forjar situações que exigissem a apresentação de novos argumentos que acabassem por condicioná-los à agraciamentos de outros títulos de terras.16 O motivo para tamanha disposição é simples: San Miguel à exemplo de Yapeyu se caracaterizou por ser uma redução ganadera, ao ponto que ficou reportada em algumas ocasiões como a redução “que possuía três estâncias de gado”.17

Descontadas as possíveis pretensões que tenham encolvido aquelas redução, é cabível dizer que a característica ganadera se configurou numa espécie de estratégia que a redução passou a tirar proveito. Sobre isso, Garriga foi muito claro nas suas palavras:

[...] ordeno, y mando que desde el día, que se intimare esta mi declaracion no intente dho Pueblo de S. Miguel introducirse en dhas tierras metiendo sus ganados, y que saquequanto antes pudiere, si es que al presente tiene algunos en ellas. Y que los PP.es Superiores del Parana, y Uruguay hagan cumplir y executar esta mi orden, sin permitir, que nadíe le contra [documento rasgado]. Y que esta mi declaración con los pareceres de dhos Padres juezes original se guarde en el Archivo de esta Docta.18

Em termos de autoposicionamento ao apontar a manobra do povo de San Miguel, Garriga garantiu e justificou uma informação para fins de precaução futura. E é por conta de situações dessa natureza que preferimos considerar qualquer situação de impasse como um desconforto que permitia a disputa por territórios expansivos.

No final, de todas as informações que podemos interpretar levam ao entendimento que prevaleceu o senso de admitir que Nuestra Señora de Loreto possuía por várias razões -ainda desconhecidas- as condições necessárias para permanecer num território que já era seu. Apesar de tudo, impressiona saber que decorridos vinte e três anos de resolvido o impasse, já em 1736 o jesuíta Bernardo Nusdorffer tenha se referido ao Yberá como um vasto território entre as proximidades dos rios Miriñay e Corrientes, onde se conferia a formação de um convívio étnico diverso que mantinha sua unidade através de ritos reducionais dos cristãos Guarani.

Conforme o religioso o cotidiano mantido entre aqueles indígenas contava com rotinas cerimoniais conhecidas, embora não tenha fingido contrariedade ao notar a ausência de curas. Supostamente, a organização e divisão das tarefas aconteciam em conformidade com as habilidades que eram desenvolvidas em solos intra-muros das reduções. Conforme salientou, a experiência ficou definida como “Pueblo de fugitivos del Iberá”, haja vista que o seu contingente populacional era composto por indígenas que num dado momento representavam dez reduções diferentes. E assim parece ter sido mantida até seu total extermínio ainda por circunstâncias desconhecidas.19

Simultaneamente assim se compreende, por exemplo, que num período de três décadas, desde que ficou estabelecida uma solução de impasse sobre a região do Yberá até aobservação de Nusdorffer, o que permaneceu e ainda persiste é a confirmação de um território de memória que hoje atende por “pantanal argentino”. Na verdade, chegamos enfim, numa clara demonstração que aquelas comunidades jamais mantiveram uma imprecisão dos horizontes que defendiam ou dos territórios que ambicionavam ter por paradeiro.

Paradoxalmente,uma vez conhecida essa manobra fica patente que os jesuítas condicionavam seus comportamentos de modo proteiforme. A seu modo, dificilmente os povos indígenas perdiam a oportunidade de reinvindicar antigos territórios, pois ao fazerem issonão só confundiam o registro oficial das decisões, como também, ratificavam, forjavam e recriavam espaços quelhes permitiam reposicionar o seu “modo antigo de viver” (Monteiro, 1992: 476).

Considerações finais: os conflitos como peças documentais

O objeto litigios pueblerinos tornou-se, sem dúvida, um tema da moda. Está presente em formatos de artigos, em apresentações de simpósios, em mesas de grupo de trabalhos e até em teses de doutorado.20 E de modo algum longe esta de se mostrar encerrado. Trata-se, em verdade, de um tema que passou a ser apreciado por uma leva mais recente de investigadores que tiveram nas situações de disputa um nicho a ser avaliado. Episódios que na sua grande maioria influenciaram na disposição do espaço territorial e na forja de novas identidades.

Ocorre que nos parece indiscutível que, o problema em questão, não se coloca apenas como um obstáculo; mas, também, é a interrogação plena de tudo que já listamos. Seja lá o que tenham sido, os títulos de terras reportam às memórias nativas de poder que por alguma circunstância precisaram passar por uma materialização gráfica. Estão mantidos à uma perspectiva histórica e territorial que os jesuítas demoraram a se ambientar.

Destarte, assim, foi construída a lógica de auto-gestão e de independência que competia a cada redução. Afere ainda, que boa parte dos títulos deprivilégios que foram distribuídos entre aquelas comunidades não se fizeram de todo confiáveis, uma vez que as concessões aconteciam em formato de quasi-merced, o que deixa suspeitar da validade em que eram distribuidas as sentenças. Tampouco conferiram uma relação de vassalagem para com a corte régia espanhola. Desses detalhes podemos entender que política de privilégios se tratava muito mais de um recurso que o jesuíta tinha para recorrer numa eventual situação de apuros ou de desconforto.

Na esteira disso, a atuação colocada a prova pelos religiosos demonstra que a realização do projeto não aconteceu por obra do acaso. Na consideração disso, o agraciamento de uma quasi-merced, correspondia a um recurso intermediário que não transmitia uma segurança plena da validade que detinha.

Mas o debate não se esgota por conta deste detalhe. Vê-se que, aproximando o fato de desgaste das suas provocações de sentido, fica constatado que as intenções que ajuizavam os indígenas ao mesmo tempo limitava-os conforme o aproveitamento e o uso dos territórios-memórias que os religiosos julgavam potenciais. Ao contextualizar isso, aproveitamos a ocasião para advertir que a ordem religiosa não só provocou um poder individual na Província do Paraguai ao ponto de ofuscar o poder da coroa espanhola em solos nativos de poder; como, também, atingiu a projeção espaçada que historicamente fazemos uso.

Reiterando qualquer leitura que tome em conta o individualismo daquelas comunidades, o contexto em si reporta de maneira mais completa as circunstâncias que acabaram por concluir na adoção de uma prática comportamental que levou a um entendimento que fez despertar entre aquelas comunidades setecentistas o senso de ambicionar terras e produtos que mais tarde pudessem reverter em alguma distinção.

Entretanto e na consideração disso, admitimos que alguns episódios de desgaste transmitem a sensação que junto das visitas dos Padres Superiores inúmeras expectativas se desfaziam. Subja, é um tanto evidente ter que afirmar que a cada visita que os mesmos se colocavam a fazer significava uma nova oportunidade para revisar a “política de reassentamentos” ou de “deslinde de terras”. Por isso, em muitas ocasiões, as reduções passaram a notar nesse rito de controle uma chance para não só reaver direitos pretéritos como para assentar novas mensuras.

Ao afirmar isso, confiamos que quaisquer que tenham sido os fatores que levaram a essas mudanças discursivas bem como as “desorientações taxonômicas” em que foram deslocadas aquelas comunidades junto aos seus antigos territórios de memória, o que de fato se impôs foi uma (re)definição de realidade sobre tudo que já havia. Foi assim com os passos de rios, com as serras e com todas as localidades estratégicas que fizessem rememorar lembranças aos tempos índios.21

Não por acaso, as divergências de fundo colonial, ao seu modo, acabaram por ratificar um entendimento recriado que não só garantiu as transformações profundas como interferiu diretamente na linha perceptiva daquelas comunidades junto à uma natureza que sempre existiu. Em tempo, as disputas conferiram, não apenas as fronteiras entre os povoados reducionais, mas consolidavam o apagamento da vida ancestral e ajustava aquela à uma consolidação de novos marcos temporais a partir da espacialidade que passou a vigorar por consequência daquelas.

Para finalizar e para ser redundante naquilo que já situamos, o projeto da Companhiade Jesus reservou aos grupos étnicos do primeiro Paraguai uma orientação histórica que acabou porfixá-los em acordos e revisões, que se bem avaliados configuram “procesos de transformación política y de nuevas definiciones de identidad” (Boccara, 2005: 72).

Arquivos, reservas e bibliotecas de consulta

Archivo General de la Nación, Buenos Aires-Argentina (AGN)

AGN. Sala IX, Legajos 6-9-4; 6-9-5; 6-9-7.

AGN. Sala IX, 7.1.1. División Colonia, Sección Gobierno, Compañía de Jesus. Varios años s/año.

AGN. Sala IX, Legajo 7.1.2. División Colonia, Sección Gobierno, Compañía de Jesús. Varios años 421.


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Notas:

[1] Este artigo é uma versão com modificações e acréscimos que fiz a partir da tese de doutorado que realizei (Maurer, 2023) junto ao Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Na tese, a questão é tratada com mais destreza, uma vez que detalhei dez situações de litígios pueblerinos.

[2] O antropólogo João Pacheco de Oliveira (1999) refere-se a esse tipo de situação como efeitos da territorialização, quando comunidades e seus personagens se reportam a antigas terras ou territórios dos seus ancestrais. A territorialização nesse caso é entendida como o processo de mobilidade que os indígenas promoviam para manter ativos lugares que lhes reportavam importância e transmitiam significados no viver que construíram e que precisou conciliar adaptações e recriações do velho mundo.

[3] Conforme observações realizadas pelo Padre Provincial, Thomas de Baeza, o Colegiado foi colocado em prática inicialmente no ano de 1721. A sua aplicabilidade era conduzido pelo Padre Superior -maior representação e também o voto de minerva em muitas ocasiões- e contava ainda com o acompanhamento do padre Provincial e um padre corregedor. Cada redução era representada pelos respectivos padres responsáveis -curas- e muito possivelmente eram reconhecidas as defesas previamente pelos cacicados.

[4] Versão Padre Francisco Avendrano. AGN. Sala IX, 7.1.2. Division colônia-sección gobierno Compañía de Jesús. Varios años 421.

[5] Versão Padre Francisco Avendrano. AGN. Sala IX, 7.1.2. Division colônia-sección gobierno Compañía de Jesús. Varios años 421.

[6] Versão Padre Francisco Avendrano. AGN Sala IX, 7.1.2. Division colônia-sección gobierno Compañía de Jesús. Varios años 421.

[7] Versão Padre Francisco Avendrano. AGN Sala IX, 7.1.2. Division colônia-sección gobierno Compañía de Jesús. Varios años 421.

[8] Versão Padre Francisco Avendrano. AGN Sala IX, 7.1.2. Division colônia-sección gobierno Compañía de Jesús. Varios años 421.

[9] Versão Padre Francisco Avendrano. AGN Sala IX, 7.1.2. Division colônia-sección gobierno Compañía de Jesús. Varios años 421.

[10] Versão Padre Francisco Avendrano. AGN Sala IX, 7.1.2. Division colônia-sección gobierno Compañía de Jesús. Varios años 421.

[11] Versão do Padre Francisco Avendrano. AGN Sala IX, 7.1.2. Division colônia-sección gobierno Compañía de Jesús. Varios años 421.

[12] Historicamente essa situação foi notada inicialmente por Sepp ([1732] 1958). Três décadas após as primeiras constatações, Escandón ([1760] 1983), retomaria o conteúdo com o intuito de ratificar o caráter produtivo empregado junto aquelas comunidades e com isso lançar luzes para as contendas demarcatórias exercidas por intermédio da assinatura do Tratado de Madri, naquilo que classificou como reflexos da transmigração dos sete povos orientais. Outro cronista que fez consideráveis recortes da característica produtiva é Joseph Cardiel ([1780] 1984: 79), quando descreveu San Miguel e Yapeyu como as reduções das maiores estâncias de gado. Daí por diante, os investigadores passaram a perceber com mais freqüência o fato em questão: Hernández (1913), Lastarría (1914), Róscio ([1802, 1858], 1930), Torre Revello (1931), Susnik (1980), Maeder (1989), Carbonell de Masy (1992), Abou (1995), Golin (1999), Cansanello (2017), Rogge et. al (2020).

[13] Não existe uma definição clara sobre o que o veio a ser uma redução. No entendimento de Ludovico Muratori, o termo redução reservou o momento em que: “a estes povos e aos outros, que aos poucos se ajudavam, foi dado o nome de ‘Reduções’ (reduzir à Igreja e vida civil), que perdura até hoje. Esse povo foi reunido e reduzido a viver numa forma de governo de Sociedade ou de República” (Muratori [1752] 1993: 75).

[14] AGN Sala IX, 7.1.1. Division colônia seccicón gobienro Compañía de Jesus. Varios años s/año.

[15] AGN. Sala IX, 6.9.5.

[16] A peculiaridade impaciente da redução de San Miguel é algo que chama muito atenção. Da redução que aceitou de modo pacífico a redução populacional para que pudesse acontecer o desdobramento de Pueblo, e assim dar origem para a redução de San Juan Bautista, foi a mesma redução que se viu envolvida em litígio com as reduções de San Thomé; San Luis Gonzaga e Nuestra Señora de Loreto. Para saber mais, consultar Maurer (2023).

[17] Acompanhamos as ilustrações realizadas por Sepp ([1732] 1958) y Cardiel ([1780] 1984).

[18] AGN. Sala IX, 6.9.5.

[19] As informações foram retiradas de Wilde (2019: 126).

[20] Esses são os casos de Maurer (2014, 2017, 2019); Serres (2017); Serres e Martins (2019); Anzolin (2021).

[21] Já se passaram alguns anos desde que os historiadores inclinaram seus olhares para a situação descrita. Esses são os casos de Kern (1985), Maldi (1997), Baptista (2009), Pereira (2012), Quevedo dos Santos e Maurer (2022).