0000-0002-4128-6610 Ranna Mirthes Sousa Correa[1][*]
A porta da verdade estava aberta, mas só deixava pasar meia pessoa de cada vez. Assim não era possível atingir toda a verdade, porque meia pessoa que entrava só trazia o perfil de meia verdade. E sua segunda metade voltava igualmente com meio perfil. E os dois meio perfis não coincidiam. Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta. Chegaram a um lugar luminoso onde a verdade esplendia seus fogos. Era dividida em duas metades, diferentes uma da outra. Chegou-se a discutir qual a metade mais bela. Nenhuma das duas eram perfeitamente belas. Mas era preciso optar. Cada uma optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia. Carlos Drummond de Andrade
Inicio este artigo acompanhada pela poesia de Carlos Drummond de Andrade por acreditar que suas palavras são um convite para ilustrar parte da minha trajetória de pesquisa de mestrado, baseada em estudo etnográfico de um projeto com foco na inclusão do nome paterno no registro civil (Correa, 2016). Naquele momento, meu interesse se voltava para as representações das profissionais do NPF e das mães intimadas, sobre os sentidos do registro civil, e as noções relativas a paternidade e família. Antes de detalhar parte desses caminhos, enfatizo que a palavra “verdade” presente no título compõe o pano de fundo deste artigo, não com o intuito de defender ou estabelecer uma verdade absoluta, mas apresentar uma análise comprometida em discutir como distintas moralidades e noções de verdade se articulam e entram em tensão em torno dos procedimentos de reconhecimento espontâneo da filiação paterna. O dicionário da língua portuguesa define verdade, como realidade, sinceridade, representação fiel de alguma coisa existente na natureza, antônimo de mentira. Para além deste, muitos tem sido seus usos e significados, principalmente em interface com o mundo jurídico.
“A verdade dividida”, poesia de Carlos Drummond de Andrade publicada em 1985 citada acima, foi apresentada pelas profissionais do Núcleo de Promoção à Filiação e Paternidade (NPF) durante apresentação no VII Encontro Alagoano de Direito de Família e III Encontro Alagoano de Direito e Filiação, promovidos pelo próprio NPF, entre os dias 5 e 6 de novembro de 2015. As psicólogas e as assistentes sociais, naquela ocasião, trouxeram à tona a ideia de que “o todo é muito mais do que a soma das partes e de que não existe apenas uma verdade”1 para uma plateia composta por profissionais e estudantes de Direito. Essa discussão apareceu ao frisarem o papel de profissionais com formação nessas áreas na atuação no judiciário e sobre a possibilidade de criar condições necessárias para o entendimento de determinada questão social, e também emocional e psicológica, em que se encontrariam as crianças, as mães intimadas e os pais investigados.
O projeto em questão intitulado Núcleo de Promoção da Filiação e Paternidade (NPF), está localizado na sede do Tribunal de Justiça de Alagoas (TJ/AL) e idealizado por juíza da região há 12 anos. O NPF atua como um órgão centralizador das averiguações de paternidade encaminhadas pelos cartórios de registro civil em Maceió. Com o objetivo de reduzir o número de registros sem o nome do pai, o TJ/AL por meio da resolução nº36/2008 prevê a criação do Registro Integral e do NPF.
O programa Registro Integral era responsável por adotar mecanismos que visam a diminuição de registros de nascimento sem o nome do genitor da criança e estabelecia que os cartórios deveriam encaminhar para o NPF todos os registros incompletos. Em posse dos dados da criança e da mãe, o NPF instaurava um processo administrativo, considerando a criança como requerente, e emitia carta intimatória para a mãe comparecer ao fórum com o intuito de “tratar de assuntos de interesse da sua/seu filha/o”. Caso a mãe não tivesse comparecido ao NPF, as profissionais realizavam uma visita até suas residências, se preciso fosse, para uma nova intimação, procedimento conhecido por elas como busca ativa.
A criação do NPF foi justificada pela iniciativa de desburocratizar o acesso ao direito à filiação, dar celeridade aos processos e solucionar os casos em audiência de conciliação realizadas por equipe interdisciplinar formada por psicológas e asistentes sociais. A equipe, ao realizar nas audiências um trabalho descrito como sensibilização sobre a importância da paternidade, visava obter o reconhecimento da paternidade, de forma rápida e espontânea, para, se possível, evitar a realização do exame de DNA. O convívio com a criança e o relacionamento desenvolvido no momento do pós-registro também movia essa lógica de sensibilização, para que a mãe “facilitasse” o cumprimento do que estava estabelecido no acordo. E em seguida, o pai pudesse exercer a paternidade de forma responsável, termo utilizado para descrever uma relação entre pai e filha/o baseada na convivência para além do documento.
O contexto de criação do NPF reflete um conjunto de iniciativas estabelecidas em diferentes contextos regionais brasileiros para lidar com casos de registro incompleto em consonância com a lei da Paternidade Nº 8560/92, na qual estabelece que os Cartórios de registro civil devem notificar o Ministério Público sempre que emitirem certidão de nascimento sem o nome do pai. Todavia, conforme apontam diversos pesquisadores como Thurler (2006), Brito (2008), Richter (2012), por exemplo, tal prática não ocorre conforme o previsto em diversas partes do país. Esse cenário de discussão também mobilizou pesquisas na região sul do Brasil por pesquisadoras como Fonseca (2014), que interessada em analisar os efeitos do advento da tecnologia do DNA nas investigações de paternidade no judiciário, discute como a evidência científica do DNA, ao revelar uma verdade “real”, também traz à cena um conjunto de moralidades entre membros do judiciário e as partes envolvidas, em que a confiança da filiação é mediada pela tecnologia.
Inspirada pela discussão, considero relevante pensar como, no caso do NPF, a confiança da filiação não está enraizada apenas na força do rigor científico do resultado através do exame de DNA. A prática e a técnica utilizada pelas assistentes sociais e psicólogas em “sensibilizar as mães para entender a importância da paternidade”, focada no reconhecimento espontâneo, permite que a confiança da filiação seja também mediada pela intuição e por um conjunto de moralidades decorrentes da relação entre as profissionais e as mães intimadas.
Como a maioria das pesquisadoras e pesquisadores atuantes na interface entre a antropologia e o direito, assumo, portanto, que a proposta aqui consiste em, para além de entender como o hiato entre a lei e a prática da lei em ação são entrelaçados, focar na agência e resistência do público do sistema judiciário procurando entender como as pessoas manipulam, contornam e refazem os efeitos da norma encerrado na legislação, conforme aponta Moore (1978). Fonseca (2014) ao discutir como o entrecruzamento do tribunal, do laboratório e do espaço doméstico e ao relatar como homens e mulheres redefinem premissas de filiação e de casal, ilumina a discussão apresentada assim como as antropólogas Vianna (2005), Lugones (2009) e Schuch (2009), ao discutirem como a esfera legal aparece não como simples ordenadora de relações sociais e sim, como uma arena de moralidades em disputa, em que os usuários e usuárias exercem impacto, trazendo à cena as suas próprias moralidades.
A temática da paternidade e cidadania ao se constituir como um fenômeno sociológico de significativo interesse no debate acadêmico nas Ciências Sociais, sobretudo quando se analisam as questões relativas à deserção da paternidade, implica repensar a parentalidade e os novos conflitos que emergem na ordem das esferas públicas e privadas (Bandeira e Costa, 2006). Tal fenómeno por ser socialmente construído, com facetas - histórica, política, médica, religiosa e cultural - envolve, além de questões de direitos, de justiça e de cidadania, aquelas relativas à “filiação materna, cuja interação com a filiação paterna ocorre em lócus sociais de profundas desiguldades nas relações sociais entre homens e mulheres, que passam pela natureza dos vínculos afetivos e sociais construídos com as crianças” (Bandeira e Costa, 2006, p. 598).
A preocupação estatal com a inclusão do nome paterno na certidão de nascimento de crianças nos conduz até a “microfísica” da administração de justiça, no qual os procedimentos rotineiros do aparato legal do estado visam contar, classificar e localizar em um lugar fixo os elementos da população (Lugones, 2009). Assim como Vianna (2005) alerta em sua pesquisa com processos judiciais de guarda e adoção de crianças no Rio de Janeiro, que, em vez de supor que o Estado é todo-poderoso, moldando indivíduos a formas específicas de comportamento, talvez seja mais interessante refletir sobre outras ordens de normatividade, muitas vezes competindo com a legalidade oficial. Nas investigações de paternidade, mesmo em etapa extrajudicial, é tentador pensar como tais políticas podem ser consideradas exemplos de regulação que considera um modelo hegemônico de família. A falta de registro civil, aliado à ausência da filiação paterna, é comumente acionada pelos profissionais atuantes no projeto como exemplos de casos de extrema vulnerabilidade social, excluindo esses sujeitos do alcance de políticas de assistência pública. Essa narrativa aparece nesse contexto para justificar o investimento em desenvolver ações de reconhecimento paterno Brasil afora. Mas não somente.
É válido situar que o contexto brasileiro reflete um cenário marcado por intensas desigualdades que envolvem tanto raça, gênero e classe. A responsabilização de famílias pobres como culpada de sua situação e não como reflexo de sua estrutura desigual, como anteriormente discutida por Fonseca e Cardarello (1999), desemboca em questões ligadas à sua reprodução e reposição das gerações de difentes maneiras relativas a questões de gênero. A alta porcentagem de famílias chefiadas por mulheres além de ser vista como um problema social tem sido comumente usada pelos legisladores como justificativa para a necessidade de testes de paternidade, bem como um conjunto de iniciativas Brasil afora para a promoção da filiação e paternidade. Isto implica em problematizar a prescição da co-parentalidade e a regulação das maternidades “monoparentais” e de mulheres de setores sociais mais pobres, consideradas “desviadas” que precisam de intervenção estatal a partir de um modelo hegemônico que impera em relação à família e diferentes comportamentos entre os gêneros.
Assim, um tipo de sexualidade feminina “errada” e “irresponsável” estaria na origem dos problemas sociais, como discute Fernandes (2019) ao analisar os discursos de acusação e responsabilização feminina no interior de instituições públicas que versam sobre acesso a vagas em creches no complexo de favelas da Zona norte do Rio de Janeiro. Trata-se de acompanhar o “duplo fazer do gênero e do estado”, como propõem Vianna e Lowenkron (2017), no contexto de uma política pública a partir de um ponto de vista etnográfico. Tais observações etnográficas aqui apresentadas são significativas para entender como as relações entre diversos atores institucionais nas interações cotidianas se dão entre os agentes e as famílias, ao mesmo tempo em que, modelam e redefinem os sentidos desses tipos de ações estatais.
Dessa forma, estudos sobre práticas judiciais de identificação de parentalidade recrutam nossos esforços para entender as lógicas subjacentes que motivam esses grandes investimentos na busca pelo pai, com o intuito de cumprir com suas responsabilidades parentais. A partir desta inserção, o objetivo deste artigo consiste em apresentar discussão sobre como as distintas moralidades, sensibilidades e noções de verdade se articulam e se tensionam entre as mães intimadas e as profissionais em torno dos procedimentos de reconhecimento paterno espontâneo. Sobre “sensibilidades” cabe mencionar que sigo inspirada pela noções de “sensibilidades legais e jurídicas” desenvolvida por Geertz (1997) entendida como maneiras vernáculas que articulam fato e lei, ordenadoras de um tipo de práticas, rituais e linguagens nesses espaços (Geertz, 1997). Portanto, entendo ‘sensibilidade’ ao longo desse texto não somente como restrita aos operadores judiciais, mas também presente no público destas instituições, aliada a intuição e a agência nessas situações.
Para que assim, possa discutir como tanto as mães intimadas quanto as assistentes sociais e psicólogas, movidas pela (des)confiança, intuição e moralidades, se apropriam, ao mesmo tempo em que, também subvertem os procedimentos padrões de reconhecimento espontâneo em busca da filiação paterna “verdadeira”. Por “verdadeira”, aqui assumo a paternidade biológica como norteadora da prática de reconhecimento espontâneo no momento de realização da pesquisa e essencial para a realização da regularização do registro civil incompleto no NPF. Para cumprir esse objetivo, apresento discussão proveniente da observação dos atendimentos como foco deste texto por ter sido um dos ambientes onde por 4 meses pude acompanhar diariamente a atuação das profissionais e a postura das mães nas audiências. Além das conversas informais com as mães na sala de espera, reitero que a metodologia reúne tanto a observação da rotina de trabalho do cartório do NPF quanto as audiências de conciliação, e a realização e análise de entrevistas com as profissionais.
Destaco como tais noções de uma verdadeira filiação paterna não estão dadas a priori e são discutidas a todo o momento, tanto pelas profissionais do NPF quanto pelas mães nas audiências. Dessa maneira, conhecer o trabalho de sensibilização realizado pelas profissionais, permite examinar como certas dimensões morais que envolvem sentimentos como amor e afeto são mobilizados pela lógica da regularização do registro civil.
No interior da sala é possível notar diversas mensagens que diziam “Sábio é o pai que reconhece o próprio filho”. Outro banner grande fixado na parede, logo atrás da cadeira da profissional, estampava a frase “Paternidade responsável começa pelo registro”, seguido de “Pai, registre o seu filho!”. Tais frases apareciam sobrepostas a uma fotografia de um homem branco, amparando o seu filho sorridentemente.
A mesa grande, ao centro da sala, já revelava que as sessões eram conduzidas no tom de conversa. A primeira audiência de conciliação com os pais era o momento em que o provável pai era instruído sobre o que se tratava o processo e questionado sobre a razão de não ter realizado o registro. A partir de falas como “o senhor sabe por que está aqui?” e “o senhor conhece essa mulher?”, as profissionais iniciavam o atendimento e explicavam que se tratava de uma investigação de paternidade, assegurada por uma lei federal, que reconhecia (e legitimava) o direito das crianças em terem a filiação paterna reconhecida.
Na audiência de conciliação, o reconhecimento de paternidade podia ser realizado de modo espontâneo ou mediante o exame de DNA, realizado pelas células epiteliais da bochecha colhido por swabs ali mesmo pelas profissionais. Independentemente do tipo de reconhecimento o acordo entre as partes quanto ao nome da criança, à guarda, às questões alimentícias e ao direito de convivencia era realizado nesse momento. Destaco essa dinâmica, uma vez que esse acordo era estabelecido antes do resultado de DNA, em caso de realização desse exame, e era validado, posteriormente, com o termo de audiência assinado pela juíza e pelo Ministério Público. Essa decisão foi adotada pela juíza como medida preventiva a fim de evitar que esses processos administrativos pudessem se transformar em futuras ações judiciais de alimentos, por exemplo, e, por conseguinte, fosse necessário outra audiência para estabelecer os termos do acordo.
Reafirmo que o trabalho de sensibilização, como regra em todos os processos de averiguação de paternidade, visava o reconhecimento espontâneo da paternidade a fim de evitar a realização do teste de DNA. Este recurso só era utilizado na dúvida do provável pai, ou em casos de pais falecidos, no qual o reconhecimento só seria possível com a realização desse exame com familiares próximos. Nesse contexto de direito da criança versus direito da mulher, firmado no princípio do melhor interesse da criança, emerge também a lógica da sensibilização para a importância da paternidade. Tal principio é norteador da prática NPF e a pesar de ser um aspecto importante da temática que envolve paternidade, ressalto que não aprofundarei essa discussão nas paginas que seguem, mas afirmo a relevância de discutir os dilemas entre o direito da criança versus o direito da mãe em artigos posteriores.
As razões elencadas pelas profissionais que colaboravam para tal ação era o desconhecimento da paternidade, a falta de consciência da importância da figura do pai e, até mesmo, a crença de que o judiciário adotava medidas invasivas (ele estava se metendo na vida dessa mãe). O trabalho de sensibilização consistia em conversa acerca da importância de um pai na família e na vida da criança, projetando nessa figura paterna uma imagem de alguém que deveria impor limites no criação e dividir as responsabilidades em relação às/aos filhas/os. As assistentes sociais destacavam sempre que a ideia de paternidade responsável perpassava o registro e a regularização do documento, mas também envolvia, principalmente, o afeto e a necessidade de convivência do pai com a criança.
Sobre o trabalho de sensibilização nas audiências, Bárbara2, uma das psicólogas, comentou:
Essa sensibilização é feita principalmente com a mãe, porque ela chega cheia de medo, não quer dizer quem é o suposto pai, e ela tem todas as razões dela, elas falam que ele me abandonou, ele não quer esse filho. Às vezes ele é bandido, tem uma série de situações. E aí a gente sensibiliza nesse momento inicial, a importância de ter esse registro completo e de ter essa paternidade estabelecida. E quando essas mães chegam, às vezes o sentimento delas é de revolta, e às vezes de revolta com o judiciário, e às vezes de revolta com esse suposto pai. E outras de tristeza, de mágoas. Acho que elas trazem muito isso de que foram abandonadas, de ele não quer dizer que o filho é dele, e outras dizem ele vai ver agora que é dele, ele vai ter que pagar pensão. Eu acho que são os três sentimentos: revolta, mágoa e tristeza. Então muitos casos elas se recusam a divulgar esse nome, eu sempre falo que não é só uma lei que acha bonitinho colocar o nome do pai no registro, é porque já existiram vários conflitos para serem resolvidos com a ausência do nome desse pai. (Bárbara, em trecho de entrevista gravada no dia 10 de setembro de 2015)
O trabalho de sensibilização, realizado pelas profissionais da equipe abordava não apenas o convencimento das mães sobre a importância da regularização do registro da/o sua/seu filha/o. Apesar de o principal trabalho do NPF consistir na inclusão da filiação paterna no registro civil, o momento em que as profissionais estavam com as mães nas salas de audiência era dedicado à conscientização da mãe em não dificultar ou inviabilizar esse contato entre pai e filha/o. O convívio cotidiano com a criança em contexto pós-registro também movia essa lógica de sensibilização, para que a mãe “facilitasse” o cumprimento do que estava estabelecido no acordo e que não “impedisse” a criação de uma relação entre pai e filha/o por quaiser que tenham sido os motivos do não-registro.
Juliana, uma das assistentes sociais, durante uma das audiências observadas, explicou para uma das mães que, após a divulgação do resultado positivo do exame de DNA se recusava permitir que ex companheiro, a partir daquele momento, passasse a conviver com a sua filha. Sua resistência se materializou no comentário “ele não tem nenhum amor pela menina”. A profissional então explicou para os pais:
Mas como que ele vai amar a criança sem ter nenhum contato com ela? Se você se recusar ou impedir que ele tenha contato com ela, isso é crime de alienação parental porque você está se negando de que ele como pai possa conviver com a criança. Você vai visitando ela para que ela possa te reconhecer como pai, e você precisa se aproximar dela para ela ter confiança. E você, como mãe, tem que facilitar isso. Você tem que pensar na sua filha porque ele é o pai e tem o direito de conviver com a criança. E você como pai tem que se esforçar para que isso aconteça. Muitas vezes, as pessoas acham que só a mãe é suficiente, mas o pai é tão importante quanto. Tanto que quando a gente não tem um pai, a gente substitui e coloca outro no lugar. A mesma coisa com a mãe. Ela precisa dos dois. Se esforce aí para facilitar esse convívio e não impedir o convívio dele com a criança. (Juliana, em relato de caderno de campo registrado no dia 13 de outubro de 2015)
Naquele momento, o pai e a mãe também passavam a ser convencidos sobre a importância da presença deles, bem como da convivência com a criança em seu cotidiano. Em muitos casos, os pais até aceitavam efetivar o registro, mas apresentavam resistência em conviver com a criança posteriormente. Seja devido ao trabalho, seja pela existência de nova companheira e nova família. Não era incomum que os homens indicassem não estar muito interessados em vínculo mais próximo com as/os filhas/os reconhecidas/os.
Em tempo, ressalto que, para o NPF, a ideia de um pai girava em torno da sua presença na vida da criança e da indispensabilidade de afeto e convivência com a/o filha/o, nem que, para isso, a postura das profissionais com os pais tivesse de ser um pouco mais incisiva.
Esse jogo entre a percepção sobre a paternidade das profissionais e a versão narrada pelas mães durante os atendimentos e as audiências movia os sentidos das profissionais a respeito do que seria considerado uma versão verdadeira na comprovação do vínculo biológico entre o pai e a criança. Ou seja, no quão disposta ela poderia estar para permitir que a paternidade responsável, como entendida por elas, de fato acontecesse.
No início deste artigo recuperei a fala das assistentes sociais e psicólogas a respeito das contribuições de sua formação no judiciário. Tais profissionais compartilham a noção de que poderiam colaborar no que diz respeito aos aspectos familiares, socioeconômicos e culturais de cada processo, a partir de seu olhar em relação à realidade daquela criança e daquela família, e não, necessariamente, trazendo a “verdade” sobre o caso. A discussão sobre verdade levantada por Bárbara, uma das psicólogas, aparece motivada pela noção de imparcialidade no processo, e a sua descrição de sua atuação está implicada em não defender qualquer posicionamento específico. Apesar de o contexto apresentado no evento se referir à presença de tais profissionais na esfera jurídica, mais especificamente nas Varas de Famílias, acredito ser relevante deslocar essas reflexões em torno da noção de verdade em um ambiente que recruta certo protagonismo nessas profissionais.
Trago esse raciocínio à análise, para pensar, a partir da noção das profissionais do projeto, o que está subjacente às realidades sociais das partes, movidos seja pela sensibilidade profissional ou intuição de cada caso. Mesmo diante do desejo de imparcialidade e da máxima de que o poder de decisão pertence à juíza, a busca pela verdade implícita nas realidades sociais e nas histórias narradas pelas partes era movida por um conjunto de elementos presentes na prática diária em torno da verdadeira filiação, válida para a efetivação do registro. Sendo assim, o jogo em torno das diferentes moralidades e sensibilidades das profissionais, bem como os limites de sua atuação constitui assunto que merece destaque à luz dos casos de Sandra e Julia.
Conheci Júlia ao acompanhar sua audiência e, apesar de estar agendada para as oito da manhã, ela havia chegado por volta das onze horas, depois de a técnica responsável pelo processo muito insistir, através de ligações telefônicas. Com certo atraso, a conciliação começou, e os termos de audiência em relação ao novo nome da criança, à convivência e à pensão alimentícia eram discutidos concomitantemente à realização do exame de DNA.
Passados alguns minutos, Júlia chamou a minha atenção por ter permanecido todo o tempo da audiência muito calada, de cabeça baixa e concordando, quase automaticamente, com o que a profissional estava propondo. Cauã, seu filho, já estava com quatro anos de idade, e aquele dia estava sendo o primeiro contato entre o pai averiguado e a criança. Ele se mostrou muito disposto a conviver com a criança e, sob a perspectiva de breve retorno para terem acesso ao resultado de DNA, todos deixaram a sala.
Nosso reencontro aconteceu na sala de espera e Júlia contou que havia resistido comparecer por quase 4 anos, desde que foi intimada pela primeira vez. Entretanto, ela retornou ao NPF devido a uma pequena confusão que envolveu o seu caso. Desde que recebeu sua primeira intimação, ela se negou a comparecer e nunca quis incluir o nome do pai no registro do filho. Se dependesse apenas de sua vontade, o documento ficaria incompleto para o resto da vida. Quando finalmente compareceu ao NPF, Júlia ao ser indagada sobre o suposto pai, indicou o nome do rapaz que havia eventualmente se envuelto
Ainda contra a sua vontade, Julia novamente decidiu não mais comparecer e o processo ficou inerte. Ao longo dos anos que passaram, o pai de Júlia, então, decidiu incentivá-la para que fosse regularizar essa situação e evitar futuras intimações. Só que dessa vez ela teve uma ideia. O padrinho da criança a acompanhou para assumir a paternidade da criança, como se fosse o pai biológico, para regularizar a situação do registro sem envolver o verdadeiro pai e evitar futuras intimações. Juntos decidiram criar uma cena de reconhecimento espontâneo e combinaram os detalhes da versão da história de onde e como se conheceram.
Mas infelizmente o plano não deu certo. Ela comentou que, imediatamente, a profissional achou toda a história muito estranha e solicitou a realização do exame de DNA. Com um sorriso nos lábios, Júlia imediatamente pensou “nossa, mas e agora vai fazer o DNA e vai ver que ele não é o pai”. A suspeição da profissional foi consequencia da análise do processo. Como Julia havia informado na primeira audiência outro homem como suposto pai, o qual o resultado do teste de DNA tinha dado negativo, a profissional considerou estranho o fato de Júlia ter aparecido anos depois acompanhada de outro homem disposto a reconhecer a paternidade da criança espontaneamente. Tal fato criou um alerta da profissional sobre a possibilidade de tentativa de fraude.
Ao acompanhar outra audiência, a profissional responsável pelo processo explicou que, obrigatoriamente, as segundas indicações de paternidade deveriam ser confirmadas a partir da realização do exame de DNA, justamente para evitar fraudes. As profissionais admitiram que a possibilidade de esse tipo de procedimento ocorrer era real, sobretudo pela imprevisibilidade de tais situações. Com a primeira indicação do nome do provável genitor pela mãe e o consequente reconhecimento espontâneo do pai, aumentava-se a dificuldade da equipe interdisciplinar em evitar a adoção à brasileira.
A rotina de observação das audiências também possibilitou que conhecesse Sandra, uma mulher negra de pele clara e com olhos esverdeados que estava com o filho de quase 1 ano de idade no colo. O atendimento foi rápido e cumpriu com os procedimentos padrões. Após a saída de Sandra e seu filho da sala, Malu, a assistente social responsável pelo atendimento logo após a coleta de material genético, comentou que aquele já era o segundo exame de DNA de Sandra. Malu rapidamente explicou que naquela tarde, diferentemente da primeira audiência, havia notado algo estranho: Sandra estava usando lentes de contato verdes. Apesar de ter ficado um pouco surpresa com a observação e ter notado que a criança em seu colo também tinha olhos verdes, a profissional comentou sobre a intenção do uso das lentes de contato para “enganar” a justiça. Ao final do atendimento, Malu comentou: “Ela já coloca a lente para enganar a gente. De quem será que esse menino puxou esses olhos verdes? Desse homem que não foi”. Seu olhar atento para os detalhes, além dos procedimentos padrões, embasavam sua visão pessoal e profissional na prática na busca do verdadeiro pai. O uso da lente de contato assim como a realização do segundo teste de DNA, sugeriu que sua intuição sobre o resultado negativo do exame fazia parte da intenção de “enganar a justiça”, uma vez que a mãe ou não sabia quem era o pai biológico da criança ou não queria informar.
O fato de a criança parecer fisicamente com o pai averiguado, por vezes, era sinal que contribuía tanto para que os pais assim como as funcionárias do NPF, se certificassem da paternidade sem o teste de DNA. “Ele é a cara do pai” são frases que em certas situações acabavam somando a esse sentimento. Para esses casos, as profissionais por sua vez, guiadas pela confiança na semelhança na aparência entre pai e filho, acreditavam na veracidade da paternidade em questão. Recupero rapidamente outro atendimento em que a profissional, no momento da coleta do material genético do pai averiguado, comentou que achava a criança parecida com ele. Em seguida, sugeriu que ele segurasse a criança no colo. A aparência física (na semelhança ou na dessemelhança) ou a mobilização do afeto pelo contato comumente influenciava a mobilização de sentidos das profissionais no que se referia à comprovação da paternidade.
Em outra audiência, marcada pela tensão e pelo conflito desde o seu início, as partes presentes não conseguiam chegar a nenhum consenso sobre as informações referente à sua filha, hoje com 14 anos de idade. Paula, a mãe presente, comentou que desejava que as coisas fossem decididas considerando a verdade, e não as mentiras que ele insistia em contar. Ao ouvir isso, Bárbara explicou que, para ela, tanto a versão dele quanto a dela eram exemplos de verdades e ressaltou a complexidade da situação, dado que ela não era juíza, a quem cabia decidir sobre a verdade, e que aquele espaço era de conciliação, cuja finalidade consistia no acordo sobre o caso.
A ideia de encenar um reconhecimento espontâneo de Julia com o padrinho da criança e a ideia de Sandra de usar lentes de contato verdes para justificar a semelhança com o próprio filho sugerem como entre aparatos legais e regimes de verdade essas mulheres mães compõem parte dos casos de apropriação, e por que não dizer, subversão e resistência diante dos processos de investigação de paternidade. A criatividade, a agência e a articulação dessas mulheres, ao mesmo tempo em que refletem o seu descontentamento na obrigatoriedade e responsabilização em ter que indicar o nome do suposto pai, também competem com a legalidade oficial na busca pela filiação verdadeira. Como figuras importantes e parte da busca pela filiação paterna, as mulheres mães somam-se a intuição e a sensibilidade das profissionais e compõem essa arena de moralidades em disputa em busca da filiação paterna.
A discussão que envolve questões como a verdade e as formas jurídicas é importante para apontar para a emergência de novas formas de subjetividades presentes nas práticas jurídicas, como já escreveu Foucault (1984). O autor destaca que a relação entre o homem e a verdade devem ser estudadas na medida em que as práticas judiciárias aparentam ser uma das formas pelas quais nossa sociedade definiu os mais variados tipos de subjetividade como formas de saber.
Nesse sentido, precisamos saber quais efeitos de poder são aceitáveis e verificáveis por procedimentos científicos. Ao entender a verdade como um conjunto de regras segundo os quais se distingue o verdadeiro do falso, atribuindo essa verdade aos verdadeiros efeitos específicos do poder, Foucault (1984) esclarece que a verdade está circularmente ligada a sistemas de poder que a produzem e a apoiam, compondo, assim, o que Foucault denomina regime de verdade. O fato de a ciência ter sido progressivamente vista como locus da racionalidade e ter sido acionada como discurso de verdade, é válido inferir que a introdução dessas novas formas de conhecimento pautadas pela ciência acabam, como no caso do DNA, também refletindo nas práticas jurídicas.
A tecnologia do DNA, presente na identificação paterna, dialoga com a hipótese desenvolvida por Rabinow e Rose (2006) de que a biogenética estaria penetrando nos “micro-espaços do tecido social”. Tais práticas científicas estariam estabelecendo novas dinâmicas a respeito da noção de gênero e filiação no mundo contemporáneo, no que se refere a ideia de certeza da paternidade. Conforme aponta Jasanoff (1995), o processo de tomada de decisões sofreu, principalmente, o deslocamento do regime da verdade do tribunal para um patamar técnico, aparentemente livre de julgamentos morais.
Em recente publicação, Milanich (2017) contribui para o debate ao analisar como a discussão da paternidade aparentemente seria renovada pela nova ciência e o advento dos testes de DNA ao demonstrar que o esforço em estabelecer a verdade biológica não esgota a questão da paternidade. Ao invés disso, a certeza científica pela comprovação genética revelou a natureza fundamentalmente social, cultural e política da paternidade, uma vez que sempre foi um relacionamento público tanto quanto privado, conferindo não apenas patrimônio, mas também nome, nacionalidade e identidade (Milanich, 2019). Segundo a autora, a tecnología do DNA ao introduzir novas formas de entendimento da paternidade desestabilizou antigas contruções legais e sociais, mas não as substituiu por completo, como acreditava Jasanoff (1995). O advento dos testes de DNA mesmo que tenha resolvido o “problema” da incerteza da paternidade ao anunciar a verdade revelada ou a certeza conferida, como anuncia a autora, criou, simultaneamente, nova moral, ética e ambiguidades legais (Milanich, 2017). Ao considerar esse cenário, Milanich (2019) ressalta como a pergunta sobre “quem é o pai” na era da genética moderna permanece ainda mais complicada e imbricada em um conjunto de de dilemas morais e também legais.
Como consequência disso, pesquisas sobre a nova forma científica de dizer a verdade (Fonseca, 2014) evidenciaram como a inclusão dos testes de DNA no contexto jurídico denunciam não só a caducidade da palavra da mulher como também a afronta à honestidade feminina. Levando isso em consideração, é válido pensar nesse jogo com a comprovação da verdade para fins registrais aliada à verdade biológica, a partir da presença de profissionais ligados a áreas como Psicologia e Assistência Social.
Nesse cenário, em função do seu saber diferenciado em relação ao conhecimento jurídico e a sensibilização como prática norteadora complexifica a discussão. Essas profissionais se legitimam enquanto agentes autorizadas para construir essa verdade, já são responsáveis pelas decisões nas averiguações de paternidade na liderança das audiências de conciliação.
O destaque para a figura das profissionais como agentes técnicos, movidas pela intuição e pela sensibilidade, se dá em razão de elas negociarem, constantemente, a verdade em relação a paternidade com as mães nos casos em que o DNA não é obrigatoriamente acionado para a regularização do registro, o que nos instiga a pensar na criação de novas moralidades para as mães e suas relações.
As profissionais não negavam a possibilidade de que a comprovação de filiação no registro pudesse ser efetivada por um pai não biológico através da ênfase no reconhecimento espontâneo, por uma mãe que conhecia os procedimentos adotodos pelo boca a boca. Mas também admitiam que tais situações se encontravam no limite da sensibilidade profissional. “Nós não temos bola de cristal para prever tais casos” era o que reclamava a equipe, dado que admitiam ser impossível prever se as mulheres e homens intimados estavam construindo uma versão comum sobre o não registro na tentativa de “enganar” a justiça.
As mães terminavam por desenvolver, em alguns casos, maneiras próprias de burlar a comprovação do vínculo com um homem com quem ela não queria mais ter contato e nem que ele se aproximasse de sua/seu filha/o. A equipe NPF esclareceu que, mesmo com essa possibilidade, elas conseguiam desenvolver, com a experiência cotidiana, sensibilidade e perspicácia para tentar perceber as especificidades e as incongruências entre as versões das histórias. Por essa razão, homens e mulheres, durante o primeiro encontro, eram atendidos separadamente, a fim de evitar histórias previamente combinadas e, por conseguinte, a realização do registro por alguém que não fosse o pai biológico.
A (des)confiança da equipe interdisciplinar do NPF relativa à versão apresentada pelas partes sobre a verdadeira paternidade da criança, bem como a consistência da versão por elas apresentadas para a não realização do registro completo aparecia movida pela sensibilidade dos profissionais. Tal sentimento, acentuado pela experiência cotidiana da prática de trabalho, era capaz de presumir uma filiação falsa em oposição a uma filiação verdadeira.
Mendes (2012) ao escrever sobre “a meu sentir”, expressão comumente encontrada nas sentenças proferidas pelos juízes, demonstra que a descoberta da verdade funciona no processo judicial brasileiro como um dos pressupostos para a realização da justiça, o que permite pensar como a subjetividade agregada às decisões judiciais são, de certa forma, constitutivas do eu dos julgadores, mesclado tanto por aspectos institucionais quanto pelo próprio habitus do campo do direito. Ciente de que na análise descrita por Mendes (2012) esse “sentir” dos magistrados segue fundamentado pelo princípio do livre convencimento, recupero seu trabalho na intenção de entender como a subjetividade tanto dos juízes quanto das psicólogas e asistentes sociais compõem essa arena de moralidades em disputa tão presentes nas decisões judiciais.
Ao discutirmos sensibilidade e intuição na prática das profissionais do NPF, destaco que o jogo entre filiação verdadeira e falsa surgiram como preocupação das profissionais, uma vez que, para o estabelecimento do registro civil, o reconhecimento da filiação deveria acontecer em consideração ao pai verdadeiro, ou seja, o pai biológico. Mesmo que, no contexto apresentado, os juristas não estivessem presentes, e as assistentes sociais e as psicólogas assumissem a liderança do processo, destaco, em alinhamento com a pesquisa de Mendes (2012), o papel da sensibilidade na busca da tão sonhada verdade. Essa postura objetiva evitar que, futuramente, o pai registral, caso não seja o pai biológico, não revogue a paternidade, sob o pretexto da ausência de vínculo sanguíneo, e a criança, já apegada emocionalmente àquela figura paterna, não sofra as consequências de tal ato.
Pensar nesses espaços de conciliação como lugar de constantes negociações de verdades nos faz pensar nas diferentes formas de construção da verdade, presentes na prática do NPF. A intuição e a sensibilidade eram elementos que apareciam tanto nos atendimentos aos envolvidos quanto nas audiências de conciliação como instrumentos na busca pelo pai verdadeiro, visando, como objetivo final, ao registro. Sobre esse aspecto, Bárbara, psicóloga da equipe, revelou:
Tem até um caso de uma pessoa conhecida que mentiu, dizendo que conheceu o cara num cruzeiro e que não sabia quem era, e a gente sabia que era mentira porque uma de nós coincidentemente conhecia a história dos muros do fórum para fora. Mas ali dentro ninguém podia interferir no processo. Mas enfim, são as escolhas de cada um. Tem gente que a gente sabe que mente pra não dizer quem é, tem gente que a gente pega em contradição, mas tem gente que é difícil. Eu também não tenho bola de cristal para saber quem está mentindo ou não. Muitas vezes tem algumas perguntas que elas entram em contradição e isso vai muito da experiência do técnico que está atendendo para poder lidar com essas situações (Bárbara, em trecho de entrevista gravada no dia 10 de setembro de 2015).
Em alguns casos, não era incomum as profissionais comentarem que muitas mulheres intimadas poderiam até alegar o desconhecimento da paternidade da/o sua/seu filha/o.
A sensibilização surgia, então, como estratégia de convencimento baseada na lógica de melhor interesse da criança, para que essa mãe pudesse fornecer as informações necessárias. As mães que agiam contrariamente (negavam disponibilizar os dados do suposto pai) estavam, na visão dessas profissionais, desistindo do processo e/ou optando pelo não envolvimento com esse homem, mas principalmente desconsiderando um direito de seu filho de conhecer suas origens ao priorizar o seu direito em nunca mais vê-lo. Em algumas situações, a negação em estabelecer contatos futuros com a figura paterna está associada a uma postura protetiva das mães em evitar que a criança se aproxime de alguém que tem comportamento violento, sugeriu aborto ou os abandonou desde a gravidez. Além de problematizar as regulações morais realizadas por diversos agentes do dispositivo judicial dirigidas a essas mulheres, é importante destacar como o querer, desejo, interesse ou necessidade dessas crianças envolvidas no processo em construir (ou não) uma relação paterna permanece desconhecido ao longo do processo. Por mais que o foco de atuação do NPF esteja pautado na inserção paterna na vida dessa criança o quanto antes, por isso o início da averiguação de paternidade logo após o registro de nascimento, a força do registro e presença paterna se impõe na vida dessa criança, sendo os seus direitos e bem-estar psicológico e emocional, os principais argumentos que se contrapõem com os direitos de suas mães e pais.
Villalta e Martínez (2016) em trabalho sobre os juizados civis de competência exclusiva em asuntos de familia em Caba e La Plata na Argentina, apontam que no início dos anos 90, mesmo quando as crianças eram protagonistas centrais das decisões tomadas, referentes à guarda, pensão alimentícia e visitas, eles não tiveram a possibilidade de participar com a sua própria voz, eram os adultos, sejam pais, mães, magistrados e outros funcionários que deveriam decidir sobre e por eles. Tal situação começou a mudar nesses juizados ao final do século XX como resultado da militância de uma série de atores, com o artigo 12 da Convenção dos Direitos da Criança (Villalta e Martínez, 2016), mesmo que no caso analisado, a criança seja considerada requerente do processo, mesmo sem ter idade o suficiente ou até mesmo ter o seu interesse considerado, no caso de crianças mais velhas.
Ao pensarmos na intuição e nos sentidos como elementos da prática do NPF na busca por uma versão verdadeira, assumimos a possibilidade negociação dessa verdade entre as mães e as profissionais. A versão e a consistência dos fatos apresentados pelas mães nas audiências, assim como a intuição das profissionais, eram os aspectos que ajudariam a compor partes (des)favoráveis em torno do reconhecimento da paternidade, na qual a (des)confiança na versão dos fatos estavam em jogo a todo momento.
Entre os componentes dessa trama retratei como o universo apresentado está imerso entre esse jogo de palavras e significados entre verdades, intuições, confianças e sentimentos. Por meio dessa negociação e das palavras de Carlos Drummond de Andrade, o autor já enunciava que não era possível atingir toda a verdade, na qual sua divisão fez com que surgisse duas metades, uma diferente da outra. Visão essa compartilhada pela equipe de profissionais do NPF.
A prática e a técnica utilizada pelas assistentes sociais e psicólogas de “sensibilizar” as mães, permite que a confiança da filiação seja mediada pela intuição e por um conjunto de moralidades decorrentes da relação entre as profissionais e as mães intimadas. Nesse jogo de sensibilidades, o trabalho de sensibilizar a mãe implica pensar que ela precisa ser ensinada ou lembrada sobre a importância da presença do pai da familia, como se outra justificativa elencada por elas não fosse motivo o suficiente. A paternidade dita como responsável, extrapola a retificação do registro e envolve amor e afeto consequentes da convivência e da partilha de direitos e deveres relativos a criança. Nesse sentido, apropriar e subverter essa sensibilização aparece ligada a ideia de que as mães não queriam que este pai tivesse uma convivência mais próxima com a criança, em que conviver com alguém que a abandonou ou a violentou de alguma forma, não estivesse dentre as opções de futuro da criação de seus filhos/as.
Essa relação de confiança e também de desconfiança, por isso a brincadeira com a palavra, é mobilizada entre vários atores envolvidos nessas ações de investigação de paternidade. O sentir de histórias cruzadas pela trajetória pessoal da profissional, entre (des)semelhanças, lentes de contato verdes e fofocas além dos muros do fórum, noções em torno do comportamento dessas mulheres mães são negociadas a todo momento. Entre comparecer ao fórum depois da intimação, indicar o nome do suposto pai e “facilitar” o convívio com a criança, enfatiza o cenário do qual são obrigadas a indicarem a filiação dita “verdadeira”.
Sem esquecer de Moore (1978), vale entender a esfera legal como uma arena de moralidade em disputa em que os usuários, aqui no caso as mães intimadas, trazem à cena sua própria moralidade, agência e criatividade, seja pela criação de uma encenação ou pelo uso de lentes de contato, ou pelo simples fato de nunca comparecer às intimações. Aqui, mais uma vez endosso, as palavras de Fonseca (2014), se os pesquisadores do final da década de 80 ainda recorriam a dicotomias envolvendo dominados e dominadores, hoje vemos “agência” e resistência por toda a parte.
Portanto, usuários e usuárias do judiciário tem seus interesses próprios e artimanhas particulares que fazem parte dessas negociações estatais que aproximam cada vez mais a lei e a prática. Seja através de meias verdades, ilusão ou miopia ou até mesmo diante da impossibilidade de atingirmos toda a verdade, a antropologia reitera a relevância desses estudos para entender como as leis interagem em uma série cada vez maior de atores, envoltas numa complexidade de dinâmicas que envolvem sujeitos, moralidades e emoções.
Agradeço à Capes e ao CNPq pelo fomento da bolsa da pesquisa de mestrado entre 2014-2016 e também às profissionais e toda a equipe NPF pela acolhida e partilha ao longo desses anos. Agradeço aos profesores Daniel Simião, Andrea Lobo e Claudia Fonseca pela leitura atenta, diálogo e força nessa trajetória. Também gostaria de agradecer a leitura e sugestões dos(as) pareceiristas que foram fundamentais para a versão final deste artigo.