0000-0003-1007-6714 Ana Paula Mendes de Miranda[]
Toward an Ethnographic Approach to Social Mobilizations, Conflicts, and Public Policies: Notes and Perspectives from an Emerging Field
Hacia un enfoque etnográfico de las movilizaciones sociales, los conflictos y las políticas públicas: notas y perspectivas de un campo en construcción
Este artigo é resultado de uma conferência realizada na Universidade de Buenos Aires, durante o “Encuentro transversal entre investigadorxs de proyectos y programas del ICA”, em Buenos Aires, 14/11/2023, como parte das atividades previstas no “Programa de Profesores y Expertos Internacionales 2023”.1
Começo relembrando o contexto de nossa parceria, que se iniciou em 2005, a partir das tarefas de coordenação do Grupo de Trabalho “Políticas Públicas e Antropologia nas áreas de Direitos Humanos, Segurança Pública e Comunidades”,2 durante a VI Reunião de Antropologia do Mercosul, Montevidéu, Uruguai, que tinha como tema Identidad, Fragmentación y Diversidad. Os trabalhos apresentados focaram na desnaturalização do conceito de Estado, explorando intervenções estatais e seus contextos, bem como nos conflitos resultantes da imposição de modelos pelo Estado e nas percepções dos grupos afetados. Do ponto de vista metodológico, os trabalhos destacaram a importância da etnografia para compreender como os agentes estatais percebem seus papéis e avaliar o funcionamento das políticas públicas, bem como uma reflexão sobre os limites e possibilidades dos conceitos utilizados pela Ciência Política e pela Sociologia no que se refere aos contextos analisados.
Relembrar um evento que já tem quase vinte anos permitiu acionar uma memória institucional e também uma memória afetiva, das amizades que se constituíram ao longo do tempo, por meio de laços que se aprofundaram progressivamente. Em tempos de política marcada pelo ódio, na Argentina, no Brasil e em outras partes do mundo, é essencial lembrar que estamos imersos em uma “comunidade afetiva” (Halbwachs, 2006, p. 51), que se constituiu a partir de experiências compartilhadas em trabalhos de campo, em intercâmbios de estudos, bem como pelo convívio pessoal que derivou desta interação profícua.
Os laços de afeto são uma força motriz da constituição de uma rede de pesquisa, afinal nossas trajetórias profissionais estão diretamente entrelaçadas com a história institucional e também com as nossas vidas pessoais, mesmo que elas não fiquem registradas em nenhum outro lugar além da memória daqueles que as vivenciou e as compartilhou. As mudanças - pessoais, institucionais, de interesses de pesquisa - pelas quais passamos em duas décadas representou a construção de outros caminhos a trilhar, que se mantiveram equidistantes e coetâneos.
Nesse sentido, o fato de o Brasil ter passado por anos bastante difíceis durante a gestão do presidente Jair Bolsonaro e que a palestra tenha acontecido dias antes da eleição do presidente Javier Milei não é uma mera coincidência, e certamente influenciou as conversas e debates que tivemos. Ambos têm em comum muitas estratégias, mas pretendo aqui destacar a “política do ódio” como um ponto que merece ser ressaltado,3 já que ela é a expressão de uma performance, supostamente, rebelde, que tem fascinado principalmente o eleitorado jovem, que se sente desconectado da “política tradicional” e, assim, acaba por apoiar essas figuras histriônicas. Como protagonistas de um populismo autoritário eles buscam capitalizar a desilusão com a democracia e amplificar o medo provocado por crises globais, de variadas faces - econômicas, políticas, climáticas - principalmente, após a crise sanitária e de saúde provocada pela pandemia da COVID-19.
Nossas crenças e desejos de construir uma sociedade democrática não devem nos impedir de estranhar nosso passado-presente. O período histórico entre as duas guerras mundiais, que viu o surgimento dos totalitarismos, marca nosso ponto de partida para a reflexão. Recordemos o período da Guerra Fria, seguido pelos movimentos de libertação colonial na África4 e Ásia, e finalmente, o colapso da União Soviética, o ódio como um elemento constitutivo da política estava presente. Contemporaneamente, ele adquiriu novos tons ao se tornar um capital político que possibilitou o renascimento de movimentos de extrema direita, que valorizam uma linguagem da violência,5 que é altamente generificada e racializada.
Sendo a “política do ódio” um dispositivo, no sentido foucaultiano (Foucault, 1979), não se trata aqui de pensar numa definição, mas sim em apontar um conjunto variado de elementos (discursos, instituições, leis, territorialidades) que estabelecem as fronteiras do dito e do não dito, que afetam a constituição de saberes e de subjetividades.
Inicio destacando que não existe uma definição jurídica internacional sobre o que se entende como “discurso de ódio”. No entanto, em 2019, foi adotada a Estratégia e Plano de Ação para Combater o Discurso de Ódio (ONU), que representou um esforço para delimitar o “discurso de ódio” como qualquer forma de comunicação oral, escrita ou comportamental que constitua um ataque ou utilize linguagem discriminatória contra uma pessoa ou grupo devido à sua religião, origem étnica, nacionalidade, raça, cor, ascendência, gênero ou outro fator de identidade (UNESCO, 2023). Em outras palavras, é a não aceitação da diferença e a defesa da ideia que é possível defender essa posição publicamente.
O que pretendo discutir tem a ver com as formas de expressão política (estatais ou não) para enfrentar o ódio, as reações (organizadas) de resistência e as situações assimétricas que permitem formas de resistir, reexistir e reinventar tradições. A minha abordagem tem se voltado a tratar da relação entre religião e política, tomando por base como se faz a reivindicação de que as marcas da matriz africana sejam reconhecidas no espaço público/na esfera pública de modo a contrastar com as estratégias desenvolvidas pelos grupos cristãos, cuja ambição é distinta - impor sua matriz religiosa, por se autoproclamarem a “maioria” da população”. As estratégias adotadas pelos afrorreligiosos estão orientadas para a valorização dos saberes tradicionais, construídos de forma comunitária e progressiva, nos próprios territórios, com destaque para o fortalecimento da identidade negra, da ancestralidade, da valorização da natureza, da produção de mídia própria. A mobilização é construída a partir de moralidades e éticas6 presentes nos terreiros, que orientam o processo de interlocução e de interação entre os sujeitos que compartilham de valores religiosos e políticos afro-orientados.
Falaremos, portanto, de conflitos, de formas políticas de expressão de ódio, mas também de esperançar, que, como ensinou Paulo Freire (2003, 2004), significa levantar-se, construir, ir atrás, é unir-se a outros para fazê-lo de forma diferente.
Desde 2008 tenho analisado as situações de conflito de natureza étnico-racial-religiosa7 que atingem as religiões de matrizes africana e afro-brasileira,8 em espaços públicos e privados. A visibilidade e repercussão dos chamados casos de “intolerância religiosa”/ “racismo religioso” traz outros elementos para o debate sobre a “laicidade à brasileira”, com a explicitação de assimetrias e revelação de benefícios legais apenas aos cristãos.9
As tensões que se observa entre os discursos e práticas de representantes de instituições evidenciam que os direitos de religiosos de tradições afro é negado cotidianamente, ao mesmo tempo em que é também atacado no plano das moralidades. É partir dessa perspectiva - quando diferentes grupos de religiosos de matriz africana passaram a fazer parte da cena pública nacional, distinguindo-se em muitos momentos do movimento negro - que tenho pensado os sentidos das mobilizações sociais, em contraste com o conceito de movimentos sociais, que se estruturou a partir de uma disputa que busca defini-lo em termos de temporalidade - “antigos”, “novos”, “novíssimos” (Gohn, 2017). Outra controvérsia presente nesse campo se revela na disputa entre os termos “sociedade civil” e “redes de ativistas” (Della Porta e Diani, 2006) e o modo pelo qual se olha, ou não, o lugar do Estado na configuração da luta por direitos.
Não pretendo aqui fazer uma resenha sobre a bibliografia que trata dos movimentos sociais, mas sim de apontar que essas classificações sociológicas refletem as mudanças sociais e políticas predominantes no “Norte Global” e nem sempre se relacionam com a produção antropológica, especialmente no contexto do “Sul Global”.
A primeira observação que tenho a fazer diz respeito a “invisibilidade” do tema - movimentos sociais - na antropologia (Gibb, 2001), que menos tem a ver com a falta de pesquisas sobre isso, mas sim aos modos pelos quais os debates teóricos e conceituais nessa área de pesquisa se expressam, ou seja, como a antropologia política constrói a mobilização como objeto, de modo que, o que se chama de “político” e as suas práticas dependem de como recortamos o tema. O que essa ausência nos diz sobre a política da antropologia e a antropologia da política?
De acordo com Della Porta e Diani (2006),10 “movimento social” é definido como um tipo específico de ação coletiva, caracterizado pela combinação de quatro elementos: conflito, identidade, redes informais e formas de protesto. Essa análise enfatiza, em primeiro lugar, que os movimentos sociais não são organizações, como partidos políticos ou grupos de interesse, mas sim redes compostas por uma variedade diversificada de indivíduos, grupos e organizações interconectados e interagindo entre si. Outra característica de um movimento social é a presença de uma identidade coletiva - o senso de pertencimento e às crenças e valores compartilhados no decorrer da interação, o que proporcionaria um senso de continuidade, mas induz a pensar numa pretensa homogeneidade, que não existe. Segundo essa concepção, os movimentos sociais estão envolvidos sempre em conflitos políticos e/ou culturais com outros atores, bem como mudanças de natureza “sistêmica”, que envolvem a transformação ou defesa de relações estruturais de dominação, por meio de formas de protesto público, que geralmente se constituem como de oposição ao Estado.
Ao tomar por base essa ideia, delimito aqui como eles se encarnam nas relações sociais, tomando por base minha experiência de pesquisa junto aos “afrorreligiosos”11 na construção de sua agenda política de reivindicação, que se constituiu a partir de um reconhecimento do Estado da existência de seus direitos, pela Constituição de 1988 e por meio da ratificação da Convenção 169 da OIT, em 2002.
A emergência desse “novo” ator fez revelar mais uma vez a dimensão das desigualdades jurídicas estruturais do Estado brasileiro, analisadas por Roberto Kant de Lima (2016), e seus efeitos ainda mais perversos quando se trata de pertencimentos étnico-raciais. A forma como os afrorreligiosos passaram a acionar as narrativas de vitimização movimenta o campo religioso brasileiro, ao questionar como as estratégias políticas de diálogos inter/pluri religiosos acabam sempre por excluí-los do protagonismo nos debates, revelando as assimetrias entre os grupos religiosos que compõem essas organizações.
Começo pela delimitação do que seriam as “redes”, pensadas a partir de uma ideia de arranjos aleatórios assimétricos, e não apenas como uma estrutura (verticalizada ou horizontalizada) de atores institucionalizados. É fundamental analisar como os atores lidam com o contínuo dilema de reconciliar suas aspirações por autonomia com as necessidades de coordenação interna e representação nos movimentos sociais. Assim, as redes que constituem os movimentos sociais não são determinadas pela estrutura social, mas sim criadas a partir das escolhas dos atores. Por exemplo, nos terreiros, observo como uma complexa rede de linhagens desempenha um papel essencial na configuração dos grupos, por conta de suas tradições faccionais.
Saliento ainda que a associação entre a ideia de “redes” e ação coletiva não é recente. O sociólogo alemão Georg Simmel já afirmava, em 1922, que os indivíduos possuem tanto filiações primárias, que são inerentes e independentes de nossa vontade, quanto filiações secundárias, que são escolhas conscientes. Ele chamava as primeiras de “causas orgânicas ou naturais” da ação coletiva e as segundas de “causas racionais”. Simmel também destacava que a estrutura social era fruto de um equilíbrio entre o conflito e a cooperação, tendo o conflito o papel de integração social. Essa concepção não nos pode fazer esquecer de uma crença que subjaz esse modo associativo que é a existência de uma idealização de um senso de comunidade, que mobiliza (e é mobilizadora) de processos afetivos e emocionais, que nem sempre são conscientes.
Conforme Tatagiba (2011) observou, no final dos anos 1980, houve um aumento significativo nos estudos sobre participação, sociedade civil, espaço público e cidadania, enquanto os estudos sobre os movimentos sociais diminuíram, no campo da Sociologia e da Ciência Política. No contexto brasileiro, o estudo de movimentos sociais desempenhou um papel central na construção da teoria antropológica, que se desenvolveu a partir das décadas de 1960 e 1970, voltada para os seguintes temas de pesquisa: movimentos populares (urbanos, de favela, de periferia, de luta por creche); movimento contra a carestia; comunidades eclesiais de base, dentre outros.12 Estes movimentos frequentemente se baseiam em identidades coletivas, como gênero, sexualidade, raça/cor e etnia, revelando uma pluralidade de atores coletivos, cada um lutando dentro de sua própria esfera, colocando desafios para a compreensão do termo “social”, que caracteriza o movimento, como algo que pode ser precário e instável.
No plano internacional, a “invisibilidade” do tema pode estar associada ao modo como a antropologia anglófona dedicou-se às questões relacionadas à textualidade e representação na antropologia, durante as décadas de 1980 e 1990, dedicando-se consideravelmente às questões textuais ou literárias do que à política em si (Escobar, 1992). Isso levou a um foco nos debates sobre a política de representação (“lugar de fala”), que é obviamente relevante, mas o modo como foi feito resultou em uma definição estreita de “arena política”, deixando de lado como se dá a prática política coletiva e a relação dos movimentos sociais contemporâneos com os processos políticos. Talvez daí venha a nossa “surpresa” com o crescimento dos movimentos de direita e extrema-direita, enquanto discutíamos formas de representação, esses grupos seguiam fazendo política de modo tradicional.
Dentre os trabalhos mais contemporâneos, nota-se um entusiasmo otimista nas abordagens que destacam uma “horizontalidade” e “autonomia” dos movimentos sociais, que estão relacionadas às novas tecnologias digitais de comunicação, como forma de mobilização política para as ruas e para o ciberativismo, bem como a relevância de movimentos artísticos-culturais (rap, hip hop, funk etc.). O trabalho de Ribeiro, Borba e Hansen (2016) aponta que o ativismo on-line é mais comum entre pessoas “bem-informadas” e com maior nível de escolaridade, da mesma forma que ocorre com formas convencionais de participação política, como protestos, envolvimento em movimentos sociais e filiação a partidos políticos, o que nos obriga a repensar na classe social como um elemento de exclusão de certos atores da cena pública.
No Brasil, a produção bibliográfica dedicada aos movimentos sociais é liderada por mulheres nas áreas de Sociologia e Ciência Política. Entre as autoras de destaque estão Evelina Dagnino, Ilse Sheren-Warren e Maria da Glória Gohn. Recentemente, destacam-se Angela Alonso, Luciana Tatagiba e Rebecca Abers. Seria um tema “feminino”, porque não é considerado um tema importante, tal como os “partidos políticos” ou “organizações sociais”?
No campo da Antropologia, a produção é vasta, mas não necessariamente relacionada a este conceito de modo isolado, mas sim associada às pesquisas sobre conflitos e identidades, classificada como “mobilização social/política”, porque sempre está conexa às intervenções estatais. Além de meu próprio trabalho, destaco aqui algumas autorias relevantes na área: Katiane Silva (UFPA); Lucia Eilbaum (UFF); Manuela Cordeiro (UFRR); Paula Lacerda (UERJ).13 Essas autoras têm em comum o fato de que o ponto de partida é o conflito, pensado como um evento que pode dar origem a mobilizações sociais, que por sua vez são caracterizadas por distintas negociações de poder, envolvendo coletivos políticos ou entre esses coletivos e o Estado. Assim, o conflito segue sendo concebido a partir de uma abordagem proposta por Simmel (2011, p. 568), a saber, uma construção social destinada a resolver divergências e dualismos.
A questão de gênero se manifesta nesse campo também no modo pelo qual o ativismo digital nas redes brasileiras gerou o #elenao. Considerada a maior manifestação de mulheres na história do país,14 mas isso não impediu a vitória do Bolsonaro, apenas apontou que a maior rejeição a ele era do eleitorado feminino, alterando pela primeira vez o cenário tradicional de que homens e mulheres votavam igual em eleições presidenciais, desde o fim da ditadura civil-militar. É preciso destacar que muitos estrategistas de marketing político avisaram que o #elenao era um problema, pois poderia ser usado de outra forma, como de fato ocorreu. Os apoiadores de Jair Bolsonaro enfatizaram a correlação do feminismo com o intuito de ativar, na memória dos eleitores conservadores, as pautas que o movimento feminista defende e que são rejeitadas pela maioria da sociedade brasileira conservadora, como, por exemplo, a legalização do aborto e as liberdades sexuais.
Temos, então, um desafio ao futuro para compreender como a principal mobilização recente pode resultar numa mudança de padrão de voto das mulheres, mas não conseguiu transformar o processo e o resultado eleitoral. Bonalume (2020) nos dá uma pista ao afirmar que é preciso se considerar que o ato de protestar se constituiu como a principal maneira de mobilizar, deixando em aberto um vazio nas ações de propor e de afirmar direitos. O engajamento do #elenao acabou por instituir uma agenda política negativa, o que é sempre um risco.
Para concluir esta seção é relevante observar que o termo “ativismo” é pouco abordado na literatura que estou tratando.15 Embora tenha o sentido de meio de luta e de forma de enfrentar a opressão, seu uso tem sido mais associado em trabalhos antropológicos relacionados aos campos empíricos das artes e da saúde, que não constituem o foco da minha pesquisa, ficarei portanto devendo uma reflexão sobre esta categoria.
Das lutas sociais contemporâneas de caráter urbano que eclodiram no Brasil, nos anos 2000, merece destaque as ações por reconhecimento de direitos envolvendo vários grupos que historicamente foram alijados desse processo, no bojo do reconhecimento oficialmente como “povos e comunidades tradicionais”,16 a partir do Decreto 6.040/2007, para caracterizar os grupos culturalmente diferenciados que têm suas próprias formas de organização social.
Quando se fala das mobilizações em contexto urbano, muitas vezes se pensa apenas no processo observado durante a política de construção de “cidades mundiais”, selecionadas para sediar grandes eventos e atrair investimentos privados e públicos, nos países chamados de “emergentes”, pelas agências internacionais, como foi o caso do Brasil, que desembocou na implantação de projetos e programas desenvolvimentistas financiados por organismos transnacionais e suas agendas “neoliberais”. Mas pouco se fala sobre as demandas sobre a gestão da posse de terra e habitação e as questões socioculturais, políticas e econômicas locais, associadas às disputas pelo patrimônio arquitetônico colonial, bem como sobre a manutenção da cultura e história urbanas, sobre um desenvolvimento sustentável e equitativo, que dê conta de suas próprias características e contextos institucionais.
Por isso, penso que é preciso falar em formas de mobilização porque nos permite indicar que há uma variedade de estratégias para visibilizar os conflitos e suas agendas de reivindicações, bem como para expressar os modos pelos quais isso ocorre de modo consciente e intencional, com o propósito de intervir e produzir efeitos. Por isso, a ferramenta metodológica mais adequada para estudá-las é a etnografia, tal como defendem Fu e Simmons (2021), pois coloca no centro do debate as pessoas, direcionando a pesquisa e análise às experiências vividas, para dar conta de perguntas fundamentais: “o que fazem?”, “como fazem?” e “por que fazem?”. Sem isso é impossível entender os momentos de mobilização ou de silêncio, pensado como uma estratégia política de evitação do conflito em situações de extrema violação de direitos. É necessário se ater aos modos pelos quais os indivíduos e grupos vivenciam os processos de mobilização ou de repressão, de modo a revelar as múltiplas vozes e as experiências de conflitos a partir “de dentro”.
As mobilizações abrangem uma ampla gama de demandas, das quais seleciono algumas situações, que diretamente afetam uma abordagem etnográfica que se revela desafiadora do ponto de vista ético-político-metodológico. Elas permitem também revelar territórios que explicitam disputas, agentes que atuam em diferentes escalas e que são orientados por subjetividades e identidades em permanente tensão. Pensando no contexto brasileiro, alguns fatores não podem ficar de fora dessa contextualização:
A mobilização e participação na construção da Constituição de 1988;
A conquista de direitos sociais e políticas culturais, impulsionada durante os governos federais do Partido dos Trabalhadores (PT) entre 2002 e 2016, que contou com a participação ativa dos movimentos sociais como atores fundamentais na criação e consolidação de uma disposição participativa em diversas áreas de políticas públicas;17
Os movimentos por moradia nas cidades - MTST;
As manifestações contrárias à proibição e à criminalização das drogas e a defesa de um modelo alternativo à guerra as drogas;
Os movimentos contra a violência policial e por reconhecimento de direitos humanos, que conta com distintas redes de pesquisadores;
Os movimentos sociais em torno dos animais, da ecologia e/ou do meio ambiente;18
O movimento feminista19 com foco na interseccionalidade (raça / classe e gênero), exemplificado pela Marcha das Vadias (2011) e pela Primavera Feminista de 2015;
Os movimentos LGBTQIA+;
As Jornadas de Junho de 2013, inicialmente convocadas por grupos anarquistas e autonomistas organizados em torno da pauta do transporte público, como o Movimento do Passe Livre e o Bloco de Lutas, com destaque para as cidades com maior número de remoções devido à Copa (Rio de Janeiro e Porto Alegre);
As ocupações de estudantes em escolas secundaristas (2016);
Os movimentos sociais conservadores, liberais e/ou de direita, ainda pouco estudados;
Os movimentos sociais de cunho religioso (evangélicos), que se destacou na cena pública numa agenda conservadora, em associação a agenda católica, de mesmo perfil;20
O movimento negro, do qual destaco o movimento afrorreligioso.21
A extensa lista de situações políticas nos interessa para demonstrar os inúmeros campos empíricos que constituem um campo de ação e de pesquisa em torno da relação entre luta política, mobilizações sociais e Estado/políticas públicas, que precisa ser compreendida a partir da perspectiva do conflito, como dito inicialmente. Esta abordagem é essencial para a Antropologia, pois os estudos sobre mobilizações sociais são não apenas labutas em busca de ganhos socioeconômicos, mas englobam também transformações culturais, que permitem compreender as competências locais dos sujeitos, bem como a rejeição de narrativas totalizantes presente nos discursos políticos, de diferentes matizes.
No Brasil, a incorporação das lideranças de algumas mobilizações sociais em ações governamentais, na construção ativa de políticas públicas, em especial, a ambientalista, a feminista e a negra, também é alvo muitas vezes da acusação de “cooptação”.22 Mas se pensamos essa interação de outras formas, que não seja apenas na chave da “transferência de recursos humanos”, podemos considerar que a relação dentro e fora do Estado é mais complexa. Penso aqui em algumas transformações fundamentais na política pública brasileira contemporânea, que foram constituídas a partir de alianças entre sujeitos coletivos, como o Movimento Popular de Saúde (MOPS) e o Movimento Sanitarista, que se articularam na criação do Sistema Único de Saúde (SUS), que é um complexo sistema de saúde pública que garante acesso integral, universal e gratuito para toda a população do país. Outro exemplo é o movimento “Ação da cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida”, criado pelo sociólogo e ativista Herbert Jessé de Souza, conhecido como Betinho, em 1993, que influenciou diretamente a criação do Programa Fome Zero (2002), mas que segue existindo como uma ação social, e se apresenta como o “movimento social mais reconhecido do Brasil”.23
As distintas formas de composição (mobilização-participação social) na fabricação de políticas públicas, que podem tanto se incorporar ao Estado, quanto seguir numa relação dentro-fora-dentro, servem para nos propor outras perguntas: como é possível pensar os processos de conquistas e perdas de direitos, em contextos de crescimento de mobilizações, que se contrapõe a um complexo contexto político, econômico e social em que se insere a ofensiva de discursos anti-direitos?; como lidar com a ideologia do desenvolvimento num contexto pós-pandêmico, enfrentamento à pobreza quando a questão étnico-racial é apontada como um obstáculo, e não parte necessária nesse debate?; como pensar que a desconstrução dos direitos de coletividades tradicionais, que lutaram para ser reconhecidas após 1988, está diretamente associada a “política do ódio”, já que representam um outro que se pensa como aniquilável?
Pensar para além da cooptação implica, portanto, refletir que os percursos e fins de ações sociais não se resumem a dois caminhos. Há que se considerar que a relação entre o Estado (e suas inúmeras faces) e as mobilizações sociais está marcada por ações ambivalentes.24 Enquanto a literatura internacional muitas vezes presume que os movimentos sociais devem ser pensados como sujeitos autônomos em relação ao Estado, essa ideia não rende analiticamente quando aplicada ao contexto brasileiro. Primeiro porque o Estado não pode ser considerado como uma estrutura homogênea. Tampouco a interrelação entre os movimentos sociais e Estado ocorre apenas por intermédio de transferências de recursos humanos, ou seja, pelas lideranças e militantes que assumem funções públicas para implantar programas/projetos. Essas disputas passam também pelo poder de interpretar e produzir novas linguagens, na qual os agentes do Estado também são afetados.
Tenho acompanhado isso diretamente no debate sobre como criminalizar o ódio, quando se discute que um xingamento a um religioso de matriz africana é intolerância religiosa ou como racismo religioso? Essa disputa classificatória25 sobre como registrar as violações é reveladora de muitos sentidos que a discriminação racial implica, bem como da possibilidade de manifestar uma discriminação cívica, revelada pela sistemática negação do reconhecimento de direitos a população negra, que se traduz por uma negação ao direito de existir.
É assim que se precisa compreender as múltiplas estratégias de mobilizações desenvolvidas por distintos grupos, em todo o país, que para fins deste artigo serão agregadas da seguinte maneira:
Promoção de eventos em espaços públicos para valorização das tradições;
Construção de redes com diversos atores do poder público (incluindo aqui as universidades) para a apresentação de demandas de respeito aos direitos;
Redação e difusão de documentos (de denúncia e de propostas);
Construção de redes com diversos atores de outras religiões.
Essas estratégias têm sido desenvolvidas num contexto no qual os conflitos são expressões de universos culturais em disputa, lutas que pressupõem relações de poder, nas quais as matrizes afro estão em posição assimétrica de inferiorização, por conta de sua histórica perseguição e demonização protagonizada pelo Estado e pelas Igrejas cristãs (católica e/ou protestantes). Podemos pensar que elas podem ser resumidas na tentativa de transformar um problema social - o conflito religioso - em um problema público (Cefaï, 1996) - o conflito étnico-racial-religioso, que demanda um tratamento especializado por parte dos poderes públicos, instituições e movimentos sociais.
É claro que as políticas públicas funcionam como processos que pretendem padronizar o sentido das ações. Na prática, os agentes públicos em sua maioria consideram que esses “casos” são crimes de menor importância. Tal situação obriga que haja uma pressão para uma participação dos religiosos/militantes. Essa presença coloca em cena outro desafio: não se pode pensar que a presença de militantes significa o fim de sua autonomia. É preciso ter em consideração que se está diante de um processo dialógico entre a melhoria representada na mudança institucional - a conquista de um direito, que implica em demanda por ações transversais - a implantação de medidas para garantir o direito conquistado, que por sua vez pode levar, ou não, à acomodação da tensão social, na medida em que a política pública comece a produzir seus efeitos. Este fluxo, que nada tem a ver com a representação ficcional do ciclo das políticas públicas ensinado nas disciplinas de administração, também não cabe no formato de modelos para intervenção generalistas e exteriores às realidades sobre as quais se atua (Pita e Miranda, 2015). É fundamental compreender como operam na prática, porque sendo tecnologias de governo voltadas para dar conta da diversidade, corre-se sempre o risco de implosão a qualquer momento, porque nem sempre sua execução pode se manifestar numa ação afirmativa, mas sim sobre uma expressão anuladora, por conta das reações às próprias conquistas de direitos.
O “retrocesso” democrático no Brasil, que teve início com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, foi agravado pelo governo de extrema-direita de caráter populista e reacionário, liderado por Jair Bolsonaro entre 2018 e 2022. Esse período testemunhou o “desmonte”/”reconfiguração”26 de políticas públicas, caracterizado pela redução, diminuição ou eliminação de objetivos, instrumentos e capacidades administrativas previamente estabelecidos para sua implementação sob influência de movimentos sociais progressistas. Lembrando que no Brasil jamais existiu o tal Estado de bem-estar social, modelo que serve de referência para as discussões sobre desmonte de políticas públicas no plano internacional, se o tomamos como um “tipo ideal”, poderia ser bom para levantar algumas perguntas sobre o que seria um processo de “desmonte”. Assim, uma política pública poderia deixar de existir:
por omissão: modo amplamente utilizado em situações em que o desmantelamento pode acarretar custos políticos para o tomador de decisões;
por deslocamento de arena: quando envolve a mudança das bases organizacionais ou administrativas de uma política;
por ação simbólica: ocorre quando os atores políticos declaram suas intenções de desmontar uma política, mas nem sempre o fazem devido a dificuldades práticas ou incertezas quanto aos benefícios políticos advindos;
por convicção: é aplicada quando os atores políticos querem desmontar alguma política por razões ideológicas.
O próprio termo “desmonte” merece uma reflexão, já que revela um imaginário de que a política pública se constrói de modo organizado, por meio de infraestrutura física e capital humano para a sua execução, revelando que a intencionalidade da sua destruição é sempre negativa. O “desmonte” não pode equivaler ao aperfeiçoamento de uma política pública, mas sua supressão, mediante a vontade de um ator político e não por pressão das demandas sociais.
Tudo isso revela uma ideia de política pública como ciclo, com início, meio e fim, que nada tem a ver com as formas práticas de sua execução, segundo as quais se está diante de processos sem limites claros, que todo o tempo são confrontados com a sua impossibilidade de existência. Tem crescido os trabalhos empíricos sobre a execução das políticas públicas, mas ainda nos faltam análises que ultrapassem o “dever ser”, como uma promessa de ordenação solucionadora, e não caiam na expectativa de controle do “agora-já” (Miranda e Muniz, 2021).
A abordagem que tenho chamado de “Antropologia enredada” se refere ao modo pelo qual a pesquisa etnográfica tem sido desenvolvida no campo das políticas públicas voltadas para “povos e comunidades de terreiro”. O nome oficial foi reconstituído como “povos e comunidades tradicionais de matriz africana” (POTMA) por lideranças que militam nesse campo, mas ele não é utilizado no cotidiano por religiosos, que preferem ser chamados de “religiões de matriz africana”, “povo de terreiro”, “povo de santo”, “povo de axé”. Os muitos nomes pelos quais os grupos se autodenominam já apontam a dificuldade para se guiar e se posicionar nesse universo. Não há uma forma consensual, há portanto muitos riscos a se correr.
A ideia de um “enredamento” foi se delineando como o modo possível de se penetrar num complexo sistema, que pressupõe também uma interação com outros movimentos sociais e agentes públicos, em cenários de conflitos étnico-raciais-religiosos. Embora as violações a essas comunidades tenham ocorrido por séculos, somente com a Constituição Federal de 1988 que se reconheceu oficialmente os “povos de terreiro” e seus direitos, após anos de perseguição oficial.
Neste contexto, trago reflexões iniciais sobre a relação entre pesquisa antropológica e as “intervenções”, que resultam em políticas públicas e que se desenvolvem de forma entrelaçada. O “enredamento” é moldado pela definição de recortes teórico-metodológicos e pelas emoções envolvidas quando se lida com questões sociais que se tornam públicas por meio de militâncias. Analisar o enredamento não se limita a avaliar resultados, mas também se concentrar nas condições de pesquisa empírica, nas formulações teóricas e na promoção de espaços democráticos e antirracistas.
A “Antropologia enredada” pressupõe uma abordagem hermenêutica construtivista da amostragem conhecida como ‘bola de neve’ ou ‘em cadeia’ (Noy, 2008). A base dessa metodologia é a seleção de interlocutores que compartilham experiências sociais relacionadas a movimentos religiosos e políticos. Essa seleção é feita por meio de uma rede pessoal de contatos do pesquisador, que o direciona a outros interlocutores, criando um processo acumulativo e dinâmico. No caso das religiões de matriz africana,27 vinculados ao candomblé, isso significa pensar que os sujeitos se dividem em linhagens, que se subdividem em ramas. Não existe uma autoridade central que uniformize o candomblé, sua organização se estrutura a partir dos territórios - terreiros - que são autônomos.
Aqui é necessário lembrar que partimos de uma abordagem teórica de que religião e política se misturam sim, desde sempre, nos trabalhos clássicos da Antropologia. Reconhecer esse princípio não é defender uma teocracia, mas ao contrário, é buscar compreender como naturalizamos certos processos sociais e estranhamos outros. É buscar produzir controle de impressões. Se o cristianismo está totalmente introjetado em nossa tradição política, ele se torna a base do “universal”, ao mesmo tempo que se constitui como o fundamento que impede a existência de tradições diversas.
O trabalho empírico está relacionado ao desenvolvimento de projetos de pesquisa que analisam conflitos identitários de natureza étnico-racial-religiosa, bem como muitas formas de violências cotidianas em contextos de políticas públicas que, supostamente, asseguram o direito à manifestação religiosa plural. Exploramos como esses conflitos se entrelaçam com estratégias de mobilização social para o reconhecimento de direitos e as práticas estatais, conhecidas como ‘políticas públicas’. As pesquisas visam desmontar a ideia de um conhecimento produzido de forma positivista e impessoal, demonstrando como as identidades dos pesquisadores e dos interlocutores desempenham um papel ativo nas redes sociais (no sentido concreto e virtual), nos circuitos e territórios existentes.
O método de produção de informações “em cadeia” é baseado na seleção de interlocutores, a partir da rede pessoal de contatos do pesquisador, que os direciona para outros interlocutores, criando um processo cumulativo e dinâmico. Internacionalmente, a técnica de amostragem em bola de neve é amplamente reconhecida como eficaz na obtenção de informações e acesso a ‘populações ocultas’. Isso se aplica, por exemplo, a usuários de drogas ilícitas, que podem ser excluídos de grupos sociais de propósito, devido a padrões de sociabilidade vigentes ou por opção, a fim de evitar forças hegemônicas.
No contexto empírico em que atuo, os grupos religiosos-políticos de matriz africana, a noção de ‘invisibilidade social’ requer uma análise mais aprofundada. Os religiosos de matriz africana não conseguem se esconder socialmente quando utilizam trajes e outros símbolos relacionados à sua filiação religiosa, que indicam suas hierarquias e cargos religiosos. No entanto, devido à histórica perseguição que enfrentaram e ainda enfrentam, muitas pessoas aprenderam a ocultar esses símbolos a fim de passarem despercebidas socialmente. Essa criação intencional de invisibilidade é um componente essencial para a compreensão do fenômeno de intolerância e racismo religioso, que tem sido objeto da pesquisa. Vale ressaltar que, apesar de longa duração desse processo, as perseguições se manifestam como ausências fabricadas. Estamos diante de uma forma de “não existência” que mobiliza saberes tradicionais e conhecimentos contemporâneos, especialmente tecnologias, para enfatizar suas diferenças.
O material empírico que embasa essa reflexão está diretamente relacionado aos projetos de pesquisa que são realizados, desde 2008, tendo como objeto a análise das interfaces entre as situações de conflitos identitários, de natureza étnico-racial-religiosa, e violências cotidianas, que se entrelaçam com as estratégias de mobilização social para reconhecimento de direitos e as práticas estatais, designadas como “políticas públicas” voltadas ao direito de exercer sua religião (Miranda e Boniolo, 2017; Miranda, Correa e Pinto, 2017; Miranda, 2015), para explorar como as gramáticas cívicas ocidentais, pautadas nas noções de igualdade, indivíduo e cidadania (Cardoso de Oliveira, 2004), são construções ideal-típicas que se manifestam localmente afetando as sociabilidades dos sujeitos, que se exercitam num universo jurídico regido por uma tradição inquisitorial, tal como nos ensinou Roberto Kant de Lima.
Busca-se desmontar a ideia de um conhecimento produzido de forma positivista e impessoal, para discutir como os pertencimentos dos pesquisadores e dos interlocutores são parte do uso ativo das redes sociais existentes, que pressupõe um tipo particular de participação observante, orientada por uma agenda democrática, progressista e includente, que constrói teias que se bordam a partir de afetos mobilizados, de conflitos de interesses, de retóricas em disputas, que não acreditam exclusivamente na racionalidade como o elemento explicativo das ações políticas, mas que prezam a ação política como meio de transformação social, valorizando a diversidade, mas que não a pensa de forma homogênea, nem salvacionista.
Voltando ao princípio - um Grupo de Trabalho para discutir pesquisas sobre políticas públicas nas áreas de Direitos Humanos, Segurança Pública e Comunidades, a partir de uma abordagem antropológica, é possível se pensar nos achados de pesquisas que nos permitiram construir algumas experiências compartilhadas.
O primeiro deles é que se deve abandonar as abordagens que se contentam em avaliar o funcionamento das políticas públicas, na chave analítica clássica dos três E (eficiência, eficácia, efetividade) e da ideia de impacto. É fundamental compreender como essas políticas operam na prática, especialmente quando se trata de tecnologias de governo destinadas a lidar com mobilizações sociais que tenham como agenda a diversidade, seja de maneira inclusiva ou excludente. Isso implica reconhecer que a produção de conhecimento antropológico é sempre o resultado de negociações entre universidades, grupos religiosos, organizações estatais, ONGs, etc. Esses atores possuem interesses, ambições e agendas temporais distintas. A vida cotidiana da política é tramada por conceitos, juízos de valor, por atravessamentos, que se entrelaçam e confrontam, resultando em fissuras, em frestas por entre as quais é possível se infiltrar e romper algumas barreiras. Isso tudo serve para orientar as ações dos indivíduos em seu mundo e sobre o mundo dos outros, incluindo aí nós, os pesquisadores. É na constituição desse espaço político que as pessoas atribuem novos significados à vida social, baseados em suas experiências seletivas e desiguais, com os conhecimentos e práticas que moldam suas rotinas.
Outro aprendizado relevante tem a ver com a estabilidade, ou instabilidade, dos movimentos, que podem variar de precários e provisórios a permanentes, dependendo das circunstâncias e oportunidades conjunturais. Não é suficiente delimitar o Estado apenas com base em seus aspectos aparentes, visíveis e acessíveis, como normas regulatórias e estruturas administrativas. É fundamental compreender os saberes-fazeres que efetivamente conduzem a ação pública na prática, implementando os marcos normativos e as disposições organizacionais, reinventando as tradições e produzindo “estatalidades” (Miranda e Pita, 2011; Miranda e Pita, no prelo). Para abordar essa realidade, é essencial captar o conflito entre regras e valores, bem como entre as próprias moralidades em permanente disputa.
Pensar em outras práticas antropológicas não se resume a construir um olhar a partir de dentro. Não se trata de buscar a “visibilidade” de sujeitos para produzir uma aparência de igualdade - racial ou de gênero - que não afeta as relações de poder. Não se trata de uma disputa por legitimação de “lugares de fala”, mas da busca por garantir que a política não seja aplicada a um sujeito abstrato passível de ser domesticado, que se constitua a partir de sujeitos reais que não suportam mais serem expostos, reexpostos e revitimizados publicamente. Isso acontece por meio de interações com a polícia, poderes públicos, instituições como escolas e hospitais, mídia e a incessante necessidade de recontar suas histórias trágicas. Essas narrativas são revividas sem o devido respeito e discrição em relação às identidades desses sujeitos, por meio de porta-vozes que se arvoram construir uma representação política do “outro” diverso, que é convertido em sujeitos despossados de si por meio de tecnologias hierárquicas tutelares que (re) produz relações de sujeição e de dependência.
Um terceiro achado tem relação com o modo de pensar a laicidade, que não pode ser compreendida como um conceito universal, mas sim de um processo político que se desenvolve a partir do Estado para delimitar fronteiras em relação às práticas sociais, para definir o que, historicamente, pode ser designado oficialmente como religião, o que tem implicado em aceitar algumas e negar outras. A laicidade no Brasil é marcada por ambivalências que não são vistas como ameaçadoras para o seu projeto normativo, com destaque para a relação privilegiada para as tradições cristãs, que se complexificou recentemente com a emergência da “nova onda conservadora”, que tenta frear a continuidade de políticas democráticas e plurais.
Para concluir penso ser importante sugerir outras perguntas que podem orientar o trabalho etnográfico na delimitação de um eixo analítico sobre mobilizações, conflitos e ações públicas, que podem constituir um aprofundamento de alguns temas apontados neste artigo:
Como os antropólogos lidam com sua participação nos processos de mobilizações?
Qual o significado de se envolver com um movimento social para o pesquisador?
Como definimos o pertencimento à “comunidade” e como isso é abordado durante o trabalho de campo?
Como as dinâmicas das mobilizações sociais afetam os modos de trabalho de campo?
Para quem direcionamos nossos estudos e como?
As implicações reveladas por esses questionamentos podem ser úteis para se pensar como as mobilizações sociais tentam transformar os comportamentos sociais quanto influenciar as políticas públicas, a partir dos conflitos. Trazendo novas perspectivas para os sentidos do que é se “envolver” no governo, em comparação com “envolver-se” com às demandas sociais, redefinindo fronteiras do que é ser um antropólogo insider / outsider, afinal o pesquisador pode ser as duas coisas simultaneamente.
É preciso, por fim, fazer uma distinção entre o “lugar epistêmico” e o “lugar social” do pesquisador. O fato de alguém se situar socialmente no lado oprimido das relações de poder não significa automaticamente que este sujeito se pense a partir de um lugar epistêmico subalterno. A Antropologia contemporânea tem se constituído na busca de incorporar um modo crítico ao pensamento colonial, ousando inscrever-se de formas insurgentes, o que me parece ser necessário avançar mais.
Os ataques que Antropologia brasileira tem sofrido, nos últimos anos,28 por discursos e práticas extremistas num cenário de negação da ciência e valorização do obscurantismo, que se agravaram com as políticas desenhadas para produzir a morte (física e social) de diferentes sujeitos sociais e dos seus ambientes de vida nas cidades, nos campos e nas florestas, que se propagou na velocidade instantânea dos likes, parecia sem freio e sem fim. A “política do ódio” é a ferramenta adequada para a reprodução do medo, que abre a porta para a destruição de modos de vida. Foi na chave do “regime do medo” que a religião assumiu o controle da agenda das eleições presidenciais, em 2018, por meio de um protagonismo “terrivelmente” cristão, nos moldes da “fé cega, faca amolada” (Muniz, 2019). Assim, foi paralisada a construção em andamento de uma política democrática, que valorizava a manifestação plural das diferenças no espaço público, revelando nuances de políticas que lidam de forma binária e excludente com os povos tradicionais.
A possibilidade de resistir aos ataques dirigidos ao ambiente universitário só foi viável por conta de um enredamento entre as mobilizações dentro-fora da academia, que permitiram a defesa e valorização de um modo de produzir conhecimento autônomo, no qual há espaço político e epistêmico para a diversidade.
A provocação inicial de pensar na interseção entre religiões/conservadorismo/democracia/extrema direita remete a uma conclusão: uma “vida social ativa” (Abu-Lughod, 2010) só pode acontecer por meio do exercício de direitos, o que se dá a partir da identificação de como as redes de sociabilidade dos sujeitos envolvidos e os meios técnico-políticos se articulam e produzem efeitos. Como parte desses sujeitos, fazendo uso de conhecimentos técnico-políticos, está o/a antropólogo/a cujo desafio profissional não se limita à construção de conhecimentos, mas é constantemente instigado a responder às demandas de intervenções (Cardoso de Oliveira, R., 2004). Assumir um lado, nesse contexto, não é apenas reconhecer-se como parte envolvida, mas é manter-se atento e crítico às responsabilidades do pesquisador diante dos compromissos ético-políticos quando se atua em contextos de pluralidade e democracia. Assumir-se como militante é apenas uma parte da tarefa, que delimita as fronteiras das representações de si e dos outros na busca da construção do comum e de uma vida pública democrática. O desafio segue quando se está diante das interações sociais, já que não há neutralidade efetiva diante de valores e práticas. As nossas escolhas não se dão no mundo ideal, mas a partir de situações concretas, que representam alternativas possíveis e válidas num dado momento e lugar.
Kant de Lima, R. (2016). Tradição Judiciária Inquisitorial, Desigualdade Jurídica e Contraditório em uma Perspectiva Comparada. En José Manuel Resende; Bruno Dionísio; Pedro Caetano; João Emílio Alves; António Calha. (Org.), As artes de (re)fazer o mundo ? Habitar, compor e ordenar a vida em sociedade, p. 337-350. Portalegre, Portugal: Instituto Politécnico de Portalegre.
Miranda, A. P. M. (2023). Política de terreiros e política para terreiros: violações, reconhecimento de direitos, espaço público e resistências dos “povos tradicionais de matriz africana” Disponível em https://br.boell.org/pt-br/2023/08/18/politica-de-terreiros-e-politica-para-terreiros-violacoes-reconhecimento-de-direitos, acesso em 15/04/2024
UNESCO. (2023). Enfrentar o discurso de ódio por meio da educação: Um guia para formuladores de políticas Disponíble en: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000387092
[1] Agradeço a professora María Victoria Pita pelo convite e pelo intercâmbio profissional com o Equipo de Antropología Jurídica y Política. O texto foi motivador de um debate sobre uma agenda de pesquisas sobre políticas públicas, direitos humanos, justiça, segurança e participação social.
[2] O GT teve uma composição equilibrada de participantes em diferentes estágios de suas carreiras acadêmicas. Com referência ao Brasil vieram pesquisadores do Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas da Universidade Federal Fluminense (NUFEP/UFF); do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública - CRISP / Universidade Federal de Minas Gerais; do Instituto de Segurança Pública (RJ); do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM - SP); da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Da Argentina participaram integrantes do Equipo de Antropología Política y Jurídica da Universidad de Buenos Aires; do Instituto de Gino Germani (UBA); do Instituto de Desarrollo Económico y Social (IDES) y el Instituto de Altos Estudios Sociales (IDAES) de la Universidad Nacional de San Martín (UNSAM); do Programa de Democratización de las Relaciones Sociales y del Centro para la Promoción y Educación en Derechos Humanos, Universidad Nacional de San Martín.
[4] Balandier (1955) foi um marco na análise dos processos de colonização, estruturada pela tríade da ação econômica-administrativa-missionária que resultava em contatos entre raças que pressupunha a supremacia dos brancos. Ver também Asad (1973); Reinhardt (2014); Pinho (2023).
[5] A violência é aqui entendida a partir da análise de Veena Das (2020), cuja obra associa uma reflexão sobre relações entre grandes acontecimentos históricos e políticos e suas relações com situações cotidianas. Para a autora compreender a violência no cotidiano não significa desconsiderar processos sociais mais amplos.
[6] Os princípios que orientam a diversidade desses povos são a senioridade, a ancestralidade, a vivência comunitária, a circularidade, a oralidade e a visão transgeracional.
[7] Classificação desenvolvida por mim para compreender à dimensão étnico-racial-religiosa como a motivação para as violações praticadas contra os povos de terreiros (Miranda, 2020, 2021, 2021a), sem cair na disputa entre as categorias êmicas - intolerância religiosa X racismo religioso, que são em si reveladoras de como os grupos que compõem o universo das religiões de matriz africana é diverso e plural, inclusive na representação política.
[8] Esses termos agregam um universo complexo, diverso (Babaçuê; Batuque; Cabula; Candomblé Jeje; Candomblé Ketu; Candomblé Angola; Candomblé de Caboclo; Catimbó; Culto aos egunguns; Encantaria; Jurema; Omolocô; Pajelança; Quimbanda; Tambor de Mina; Terecô; Toré; Umbanda; Xambá; Xangô) e disperso pelo território nacional, que muitas vezes foi representado sob a forma da integração e miscigenação, ocultando os conflitos e reificando as ideias de uma “brasilidade”, que se caracterizou pela invisibilização das marcas identitárias de africanidade e de indigenidade.
[9] Fernando (2014) analisa, inspirado na metodologia de Talal Asad (2003) de olhar através de sombras, a presença muçulmana no espaço público francês e os desafios às ideias e normas estabelecidas, que expõe a instabilidade e as contradições da república secular. Esse contraste é uma inspiração para pensar na presença das religiões de matriz africana no espaço público brasileiro e os conflitos que se explicitam nesse cenário.
[10] Essa perspectiva sintetiza as várias correntes de pesquisa e análise sobre movimentos sociais na sociologia.
[11] Refere-se aos religiosos de matriz africana que atuam em movimentos sociais e políticos (Miranda, 2020).
[12] A distribuição de teses e dissertações de antropologia sobre movimentos sociais varia significativamente por região no Brasil, com a Região Sudeste liderando com 45,29%, seguida pela Região Sul com 25,29%, a Região Nordeste com 16,47%, a Região Centro-Oeste com 10,58% e, por último, a Região Norte com apenas 2,35%. Ver Alegria, Bulgarelli, Pinheiro-Machado (2020).
[13] Há muitos mais pesquisadores e pesquisadoras trabalhando com esse recorte temático, os destaques selecionados têm a ver com a escolha da categoria “mobilização social” como títulos de trabalhos ou eventos organizados.
[14] O movimento foi organizado como um ‘grupo’ através de uma fanpage na rede social Facebook, intitulada “Mulheres Unidas Contra Bolsonaro - MUCB”. Posteriormente, a página redefiniu o nome para Mulheres Unidas Com o Brasil, mantendo as iniciais MUCB. O ato mais importante ocorreu em 29 de setembro de 2018, antes da primeira etapa do processo eleitoral, tendo sido registrado atividades contrárias a Bolsonaro em 114 cidades de 10 estados, com destaque para cerca de 100 mil pessoas no Largo da Batata, em São Paulo, e 25 mil na Cinelândia, no Rio, no momento de pico. Ver https://www.ihu.unisinos.br/categorias/188-noticias-2018/583263-elenao-a-manifestacao-historica-liderada-por-mulheres-no-brasil-vista-por-quatro-angulos. Ver também Silva (2021).
[15] As palavras-chave mais recorrentes para tratar do tema foram: lutas; participação; movimentos; ações coletivas; conflitos; confrontos; protestos; mobilizações; manifestações; reivindicações.
[16] São 28 grupos incluídos na legislação, com destaque para os povos indígenas, quilombolas e ciganos, como os mais conhecidos, e os povos de terreiro, que são aqueles que possuem vínculo com casas de tradição de matriz africana. Ver https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6040.htm, acesso em15 de abril de 2024.
[17] Muitos “militantes” se tornaram agentes governamentais. Esse processo de transição é muitas vezes pensado como uma mera troca de lugares, mas essa é uma perspectiva muito limitada, que não dá conta desse fenômeno.
[18] Deu origem ao debate sobre o racismo contra os terreiros - caso da lei no Rio Grande do Sul, ver Miranda e Almeida (2022).
[19] No contexto do feminismo latino-americano da década de 1990, Sonia Alvarez (1998) argumenta que a criação de novas agências governamentais de dicadas às questões das mulheres se tornou uma prática comum na região. Durante esse período, feministas proeminentes também passaram a ocupar posições nas burocracias estatais. Alvarez ressalta que essa dinâmica não necessariamente indica cooptação ou perda de autonomia, mas sim reflete as lutas pelo poder interpretativo.
[20] Uma agenda política cristã progressista está presente nos movimentos sociais brasileiros, mas ela não possui o caráter hegemônico que a agenda conservadora expressa.
[21] Mariana Ramos de Morais (2018, 2023) apresenta uma substantiva pesquisa sobre como a agenda e a política pública voltada aos interesses dos movimentos negro e de afrorreligiosos se desenvolveu a partir do primeiro mandato do Presidente Lula em 2003, mas que já era gestada nos movimentos desde os anos 1970. Ver também Miranda (2023).
[22] O conceito de cooptação foi desenvolvido no âmbito da teoria das organizações, com o sentido de mobilização de recursos para o cumprimento de determinado fim (Selznick, 1966). Ver também Gomes e Alves (2017).
[24] Como exemplo, podemos pensar no Ministério Público Federal (MPF) tem desempenhado um papel fundamental na transformação das demandas de movimentos sociais em questões legais, tendo o poder de mobilizar o sistema judiciário e, consequentemente, influenciar os Poderes Executivo e Legislativo. No entanto, a atuação do MPF na operação “Lava-Jato” questionou essa representação ao revelar as práticas inquisitoriais nada democráticas que o MPF desempenha quando se trata de ações penais.
[25] Processo equivalente pode ser observado no caso da luta por incluir o “feminicídio” como um modo de classificação penal, por meio da Lei nº 13.104/2015, que se complexifica diante do debate feminista sobre o “femícidio” e o “femigenocídio” (Caicedo-Roa, Bandeira, Cordeiro, 2022).
[26] “Nós temos que desconstruir muita coisa” disse Bolsonaro, em março de 2019, em viagem oficial aos Estados Unidos. Sobre uma discussão sobre o “desmonte” das políticas ver Gomide, Silva e Leopoldi (2023).
[27] Que também podem ser chamadas de afro-brasileiras, afro-americanas, afroameríndias, conforme as correntes teóricas e pertencimento dos religiosos.
[28] Refiro-me, em especial, à perseguição dirigida aos antropólogos durante a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da FUNAI-INCRA, a partir de 2015, que resultou na quebra de sigilo bancário do então presidente da Associação Brasileira de Antropologia, Antonio Carlos de Souza Lima, bem como às outras formas de cerceamento ao trabalho de pesquisadores e pesquisadoras desde então, inclusive ao assassinato do antropólogo Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, em 2022.