0000-0003-1281-8048 Luiz Couceiro[1][2]
Ecosistemas pedagógicos en situaciones de hostilidad educativa: Un ejercicio de autoetnografía y antropología autorreflexiva
Pedagogical ecosystems in situations of educational hostility: an exercise in autoethnography and self-reflexive anthropology
Em março de 2023, vivíamos no Brasil o primeiro semestre letivo totalmente presencial no sistema público universitário federal. Era o início da disciplina Antropologia 4, para o curso de licenciatura em Ciências Sociais na Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Ela estava ancorada em um conjunto de tópicos temáticos, cada um deles concentrado em um(a) autor(a) específico(a). A ideia central era ensinar linhas-mestras de perfis de antropologia desenvolvidos do início dos anos 1970 até o presente, fora do Brasil, porém marcantes no estabelecimento do campo nacional. Programei as atividades segundo as seguintes chaves-de-leitura: a proposta de Clifford Geertz de uma antropologia hermenêutica, centrando esforços em artigos presentes em A interpretação das culturas (1973); a construção dos entendimentos das maneiras de existir pela antropologia, na passagem da perspectiva dos informantes de outrora para a de interlocutores de então; os critérios de significação das experiências de campo, compreendendo a etnografia em termos de estilo de produção textual acadêmica e suas ordens de prestígio e status neste campo. As aulas eram noturnas, como na maior parte das graduações voltadas para a formação de professores, no Brasil.
Entrei em sala querendo escutar os(as) alunos(as) sobre as motivações de ainda estarem ali. Isso porque a turma necessariamente não era de calouros(as), mas sim composta por quem desejava concluir o curso. A UFMA, na qual estava trabalhando havia dez anos, está localizada na cidade de São Luís, capital do Maranhão, estado onde a concentração de renda e a inflação são das maiores do país, o analfabetismo elevado, as possibilidades de ascensão social, mínimas que sejam, quase nulas, transportes público-privados ineficientes e insuficientes condições sanitárias. Quem não possui automóvel deve enfrentar um enduro para chegar à cidade universitária. Vivíamos nos escombros do governo do expresidente Jair Bolsonaro, promotor de campanha de esvaziamento do orçamento para o ensino público em geral, além de incessante difamação e desencorajamento para nele ingressar. Estávamos sem segurança suficiente num campus escuro, onde gramados e jardins viraram matagais. Água, limpeza, iluminação e manutenção de banheiros eram quase nenhuma. Cantinas, reprografias e secretarias em geral, fechadas. A volta para casa era algo arriscado, motivo de eu terminar a aula às 21 h e não 22 h, ainda mais no chamado inverno amazônico, período de chuvas constantes, torrenciais e, consequentemente, vias de circulação inundadas.
As elites do estado pertencem a famílias que acumulam capital econômico, político e social desde o período da colonização portuguesa. O estado possui os três biomas, possibilitando diversidade de espécies e formas de vida, em seis meses de calor entre 27 ºC e 35 ºC, porém sensação térmica de mais de 40 ºC, com chuvas torrenciais, e outros seis praticamente secos. Assim, em parte do território, construído principalmente a partir da cotonicultura pela demanda da tecelagem da primeira Revolução Industrial, na segunda metade do século XVIII, latifúndios escravistas de africanos e seus descendentes e trabalho coercitivo de indígenas foram mantidos e até mesmo expandidos depois da independência (1822) (Couceiro e Silva, 2015) Tal estrutura de poder foi reforçada durante e depois de sangrenta guerra civil, conhecida por Balaiada, na qual coletivos de complexa e paradoxal constituição política lutaram pela frustrada emancipação provincial sobre o território nacional. Parte destas elites estava envolvida no lucrativo comércio e tráfico transatlânticos e internos de africanos, ladinos e crioulos escravizados, turbinando suas malhas de poder e ganhos econômicos, conforme podemos verificar em seus inventários. Envolveram-se, também, em agressivos episódios de tentativas de controle e submissão de coletivos indígenas e pessoas livres e pobres (Assunção, 2015).
A produção rural até os dias atuais tem foco nos mercados internacionais, do algodão ao gado premiado, passando por arroz e açaí, por exemplo. A proclamação da República (1889) foi o gatilho para que aquelas famílias transformassem seus latifúndios em municípios, dominando os cargos de prefeito e os demais da administração pública, principalmente os estratégicos ligados à segurança policial e da regulação fundiária, para seus próprios interesses e de aliados. Com essas elites bem instaladas e vivendo à vontade o exercício do poder, tiveram o século XX como palco da montagem de estruturas de controle e perseguição aos seus desafetos, acumulando casos não-resolvidos de assassinatos brutais e cruéis, não somente de indivíduos como de coletivos inteiros. Mesmo depois da abolição oficial da escravidão (1888), o estado é dos recordistas em situações de trabalhadores submetidos a condições análogas à mesma, não somente nas fazendas como também em negócios de grandes magazines nacionais e internacionais. A cereja do bolo veio durante a ditatura cívico-militar-empresarial (1964-1985), de farta colaboração dos grupos de mando local, que ampliaram suas ações policiais-militares de controle territorial e da população pobre, base da mão-de-obra de suas fazendas. Paradoxalmente, o primeiro presidente do Brasil da redemocratização era o líder da família mais poderosa do estado, tendo sido suporte local do regime ditatorial, como governador. Era vice candidato do presidente falecido dias depois de eleito, porém não empossado. O poder de tais elites maranhenses é tal que ainda é compreendido como fundamental para o equilíbrio do jogo político nacional, haja vista que ocupam cargos em todos os escalões em ministérios e secretarias no atual governo federal.
Compondo o set de interesses ditatoriais, foram instaladas empresas de exploração de comodite para exportação aos mercados internacionais de mineração: Vale do Rio Doce e Alumar (Consórcio de Alumínio do Maranhão). A primeira, pública, fundada em 1942 e privatizada em 1997, e a segunda, de 1981, um conglomerado das empresas transnacionais Alcoa, South 32 e Alcan. Suas diretorias e conselhos contam com membros das poderosas famílias, que se revezam em cargos eletivos e indicados politicamente no nível nacional. Elas eram avalistas de decisões políticas fundamentais, como obtenção de licenças ambientais de todos os perfis. Populações já precarizadas pelo poder local passaram a ser exploradas e violentadas pelas ações empresariais, nacionais e internacionais, de ocupação geográfica, tendo agentes públicos dos universos policiais e jurídicos como linhas auxiliares em projetos de sanguinária expropriação territorial. Tecnologias complexas de maquinário e mão-de-obra super qualificadas vêm se somando às mesmas práticas brutais de outrora, num sofisticado esquema de infiltração ecossistêmica de consequências ambientais perversas.
Os(As) alunos(as) da turma, além de enfrentarem essa brutal estrutura econômica e de parcos recursos objetivos para construir suas maneiras de existir, vinham de municípios historicamente afetados por tal processo histórico, de nuances distintas somente com o grau de tempero de uma mesma receita de enriquecimento privado com uso vampiresco do Estado, na dinâmica de privatizar lucros e socializar prejuízos. Eram somente dez pessoas, todas se reconhecendo como negras, pobres e descendentes de populações de origem escrava africana e ou indígena, na medida em que ao longo do tempo ambas se associaram em termos reprodutivos e na produção de outras maneiras de existir. Conviveram com e recusaram a se curvar às justificativas morais desgraçadas sobre chances de melhoria de vida, disseminadas pelos canais da economia linguística das elites, enfatizando de maneira acrítica a concentração de renda, pobreza, educação escolar deficitária. Estratégias de desencorajamento da difícil tarefa de romper com o destino duro da maior parte de seus familiares eram por elas mesmas introjetadas. Mas há exceções por meio de redes familiares através de parentes que migraram para a capital e passaram a fornecer hospedagem e acolhimento aos seus descendentes que conseguiam chegar à universidade pública, na última década.
Nas últimas três décadas, os debates e as pesquisas de antropólogos(as) sobre ambientes educacionais têm aumentado sensivelmente, com vasta agenda de questões, investigações, metodologias, propostas de abordagem, aparato conceitual, sobretudo etnográficas (Dauster, 2012; Gusmão, 2014; Oliveira, 2015; Oliveira, Boin e Búrigo, 2018; Vega Sanabria e Duarte, 2020). No Brasil, em tal produção observamos múltiplos sentidos e capilaridades de instituições de ensino noutros tantos ambientes onde seus agentes produzam suas maneiras de existir, desde abordagens pioneiras (Gusmão, 1997; Dauster, 2004), outras passando por questões de gênero e sexualidade (Rosistolato, 2009; Braga, 2021; Cavalheiro de Jesus, 2024), projetos de extensão (Borges, 2016), ontologias ameríndias e quilombolas (Cohn e Santana, 2016; Munzanzu e Barboza, 2022), cotas no ensino superior (Silveira, 2017; Borges e Bernardino-Costa, 2022), administração escolar (Pires do Prado, 2009; Gomes, 2018; Franklin, Andrade e Koslinski, 2024), pedagogias no contexto pandêmico (Couceiro e Rosistolato, 2022a; Maluf, 2022), pesquisas coletivas em escolas (Rosistolato e Pires do Prado, 2015), para ficarmos com exemplos marcantes e pontuais.
Todos esses trabalhos de investigação mostram que parte considerável da agenda em antropologia -produzida através de etnografia- em educação vem operando por interlocução com os agentes do ambiente, não como pessoas passivas, mas como seres dotados de escolhas dentro de cenários em que buscam existir (Medaets, 2019; Arruti, Vieira e Silva, 2019; Damásio e Pisani, 2024). Isso ocorre em diálogo com pesquisadores(as) de e em outros países, valorizando pessoas como agentes que animam as relações envolvidas nos processos de ensino e aprendizagem, dentro e fora do ambiente escolar, levando em consideração situações paradoxais, conflitos entre o que desejam fazer e o que é de fato possível realizar através do acesso à e dos existires na educação formal (Ferguson, 2001; Lareau, 2003; Olweus, 2006; Cave, 2007; Blum, 2009; Lareau e Jo, 2017). Projetos pessoais e coletivos sobre usos diversificados do campo de sentidos e possibilidades ofertados nos universos escolar e universitário já haviam sido observados como elementos-chave para se entender situações educacionais, até mesmo com formulações de processos de justificação dos agentes sobre certa negação de sua eficácia (Willis, 1977). Há que se destacar, também, nesse aspecto as pesquisas de Becker, Geer, Hughes e Strauss e outros (1982) em relação ao estabelecimento de perfis profissionais-acadêmicos, Ortner (2003) sobre as marcas e memórias das instituições educacionais em histórias de vida, formuladas e narradas pelos próprios agentes em diálogo com a pesquisadora, na produção de capital social, e Lingier (2019) acerca da construção dos mecanismos para se lidar com conflitos e desavenças, correlacionando ambientes extraescolares experimentados pelos(as) alunos(as).
A pesquisa que venho realizando oferece possibilidades para perscrutar sentidos estabelecidos pelos(as) discentes, ao se encarar a sala de aula como um dos pilares centrais do universo interacional, e como outros a ele se conectam naquilo que pesquisas em antropologia podem fornecer de mais impactante (Ruth et al., 2022). Ou seja, é preciso partir tanto da compreensão de que etnografia é um processo aberto de produção de conhecimento, e não mera ferramenta - aqui, no caso, em estudos educacionais (Couceiro, 2020; Syrjala, 1997; Frank e Uy, 2004; Rainio e Hilppö, 2017) - metodológica, como que somos atravessados por conjuntos de forças afetivas, intelectuais, paradoxais, em permanente elaboração. Assim sendo, considero na formulação dos argumentos a recente produção etnográfica sobre situações didático-pedagógicas, nas quais professor(a) é pesquisador(a), e em alguns casos o mesmo se pode dizer de alunos(as). Análises sobre impactos da etnografia na formação profissional docente foram realizadas por Cerletti (2013). Rúa (2021) e Mullen (2000), em diferentes contextos de investigação, demonstram em que sentidos modos de aprender e pesquisar devem ser inquiridos criticamente em processos de compreensão dos (su)jeitos pedagógicos que nele são estabelecidos. Trnka (2017) mostra, por exemplo, o rendimento de mini-etnografias de 50 minutos, como micro mergulhos de campo exploratórios, por meio de instruções previamente estabelecidas e explicadas aos(às) discentes. Já Swyers (2016), em um cenário de desqualificação da qualidade textual de F. Boas por seus colegas de departamento, convida os(as) alunos(as) a experimentarem aplicar conselhos deste autor na escrita de seus trabalhos de campo exploratórios.
Neste artigo, busco compreender os usos pragmáticos dos textos lecionados em Antropologia 4 na produção das justificativas desses(as) alunos(as) sobre terem ingressado e quererem se formar em Ciências Sociais. Ao contrário de outros artigos em andamento, neste não pude mergulhar em considerações mais refinadas e detalhadas sobre os agenciamentos dos(as) discentes, uma vez que busco oferecer elementos do contexto histórico para que o(a) leitor(a) tenha subsídios suficientes para a compreensão do que ocorreu nas aulas e do universo de vida dos(as) discentes. Em seguida, procurei deixar meu plano de ações pedagógicas claro, e em que termos foi sendo realizado em diálogo com os(as) estudantes, alimentando-se dos seus agenciamentos. Tais opções visaram sustentar as duas novidades sensíveis, nesse artigo, acerca da agenda de pesquisas que venho desenvolvendo (Couceiro, 2017, 2020, 2021, 2023). Por meio da ideia de pedagogias em ambientes hostis indicarei em que termos o processo de apropriação dos(as) alunos(as) de suas trajetórias educacionais foi ocorrendo. Além disso, avaliarei em que medida essas pessoas passaram a se apoderar das condições de existir no que definirei por ecossistema pedagógico. Entendo por isso, em resumo, a produção de existires em meio aos recursos e condições a partir das quais podem agenciar sua posição em relação às demais pessoas e objetos envolvidos, para viver de maneira satisfatória para si as situações de ensino-aprendizagem. Vale dizer que ambos esses conceitos estão sendo por mim confrontados com outros, em abordagens do campo nacional e internacional da antropologia em educação, que entendem a importância de se compreender como alteridades são produzidas em cenários de pobreza material e de serviços básicos os mais diversos, mas sem que eles sejam determinantes como elementos únicos que pressuporiam existências escolares sem criatividade, esperança e com esterilidade crítica (como se pode verificar, por exemplo, em Ezpeleta e Rockwell, 1985).
Ao invés de provas cobrando conteúdo ou seminários sobre textos e seus autores, propus que a avaliação fosse realizada em três etapas. Forneci aos(às) alunos(as) roteiros prévios, no intuito de organizar as leituras e orientar caminhos para que escrevessem as respostas que, na verdade, se tratavam de reflexões sobre suas próprias situações educacionais. A escolha de um ponto central a ser questionado caberia a cada aluno(a), e sua justificativa a partir do texto que eu apontava em cada item do roteiro. Todo o trabalho seria uma autoetnografia exploratória sobre traços da vida estudantil de cada aluno. Isso permitiria relacionar a experiência pessoal com narrativas de outras pessoas com reconhecida situação semelhante, na turma, universidade, família ou vizinhança. Era urgente evitar o perigo e tramas egóicas e hiperindividualistas, e enfatizar as ambiências e condições de possibilidade para que existências encontrassem traços em comum. Era preciso qualificar as relações experimentadas pessoal e coletivamente, levando em consideração os ganhos e limites-cuidados na produção, mesmo que em caráter de iniciação etnográfica, da autoetnografia (Versiani, 2005).
Através da autoetnografia, o conhecimento seria algo radicalmente experimentado, ajudando a lidar com o fato de os alunos trabalharem formal ou informalmente além de estudarem, ou seja, sem tempo para trabalhos de campo mais tradicionais, digamos, semi ou pretensamente malinowskianos (Giumbelli, 2002). Tal exercício somaria força ética numa autoria encarnada, envolvendo posicionamento político, reafirmando a intenção de que escrever sobre o outro e sobre si podem e devem estar simultaneamente na prática etnográfica, mesmo que de caráter exploratório (Marcus e Cushman, 1982). Afinal, a turma estaria se implicando em todos os pontos a serem trabalhados pedagogicamente na Antropologia 4, indo além de registrar vozes, falantes e discursos (Strathern, 2014, p. 137): visão de si construída no processo temporal vivido em sincronias e diacronias, reflexividade exercitada na escrita, engajamento crítico para explicar ao leitor o cenário geral, ou os elementos do ecossistema pedagógico, vulnerabilidade autoral como parte da investigação, redação de um texto sem compromisso de conclusões, execução de transgressões críticas na montagem textual e na relação com autores inspiradores e operar por meio de diálogos vividos mediados por instituições, de ensino, no caso. Portanto, tendo como suporte artigo de Gama (2020), e observações que preparei fundamentado em Denshire (2014), os(as) estudantes deveriam elucidar quais foram os critérios para a escolha da temática a ser analisada através da autoetnografia exploratória, e justificar quais estratégias seriam adotadas para a realização da mesma. A questão a ser desenvolvida por cada discente deveria obedecer às ponderações epistemológicas e os desafios no envolvimento com os interlocutores lidos e debatidos com base em Favret-Saada (2005).
A largada estava dada para que os(as) estudantes dialogassem sobre como teriam chegado ali e até aquele período, e seus anseios e frustrações que guiassem o desejo de concluírem o curso de licenciatura em Ciências Sociais. Estávamos, juntos, construindo exercício pedagógico, informado pelos textos e seus(suas) autores(as) e pelas minhas explicações e mediações sobre tais. Vivíamos a ideia de fazer antropologia para questionar e buscar compreender situações concretas da vida dos(as) alunos(as), de seus modos de existir enquanto universitários(as) naquela situação pós-pandêmica, ao menos em termos de seu pico. Tratava-se do desafio de alicerçarmos pesquisas abertas e fustigando interlocuções que mostrassem o valor de registramos os paradoxos e as controvérsias em meio aos modos de identificarmos traços da (des)motivação educacional, localizando os vetores de possíveis explicações nos termos das pessoas envolvidas nas situações pedagógicas que exigissem letramento mais avançado. Além disso, vivíamos um momento privilegiado de questionar, em plena escrita (cri)ativa, os limites da formulação sintática da relação sujeito-objeto, radicalizada em termos reflexivos provocativos por Favret-Saada (1977).
No início de cada semestre, os alunos em Ciências Sociais traziam comentários influenciados pelo senso comum, medida dos ambientes extra-acadêmicos e afins que frequentavam. Nas duas primeiras aulas, independente da disciplina, insistia como antropologia estudava as maneiras pelas quais as pessoas em conexões coletivas construíam seus modos de existir. Lembrava que nosso ofício é o de capturar, na relação com pessoas, e nos implicando com elas, em que termos significam suas vidas, através de quais parâmetros, onde há quais perfis de contradições e coerências, tanto nas economias linguísticas das quais fazem parte como nas ações que não sejam pela fala. Quais marcadores sociais podem nos auxiliar na investigação de como as pessoas vivem, e quais estratégias elas constroem para lidar com as condições objetivas ecossistêmicas que habitam? Em que medida seus afetos e demais situações envolventes são significadas? (Elias, 1987) Eu sempre insisto no fato de que não existem comportamentos ou ontologias “naturais” ou “normais”, mas sim compartilhamento de categorias de percepção do universo de significações ao qual as pessoas pertençam. Deste modo, lembro aos(às) estudantes que não é correto confundir experiências biológicas e agenciamentos ignorando as mediações e seus paradoxos, e sempre ficarmos atentos para não projetarmos nossos entendimentos sobre as expressões dos outros (Sigaud, 1995). Essas explicações e o efeito bumerangue do doxa (Sigaud, 2007) no início de cada disciplina, enfatizando que não respondemos a questões do senso comum, ajudam a entender os motivos pelos quais cheguei ao termo ecossistemas pedagógicos para pesquisar ambientes e situações de ensino e aprendizagem.
Não existimos isoladamente, sem nos relacionarmos com outros seres, sendo vivos, ou seja, que apresentam material genético (RNA ou DNA) e são compostos por células que necessitam de energia para produção metabólica: humanos/animais, vegetais, protozoários, fungos, bactérias, algas, vírus, por exemplo. Ou não vivos, que são todos aqueles inanimados, sem vida, mas considerados pertencendo à natureza: pedras, solo, ar, água, por exemplo. Tais definições foram perigosamente usadas na formulação da chamada sociobiologia, devidamente respondida por Sahlins (1976) através de argumentos muitas vezes de cunho lógico sobre sua própria natureza determinista e delirante acerca da pobreza em compreender o que seria o ser humano. Para seus idealizadores, humanos seriam reduzidos à consequência de evoluções genéticas individuais para fins reprodutivos enquanto espécie. Isso implicaria a continuação da noção de tempo linear reforçada por filósofos no Iluminismo (Lowith, 1991; Cassirer, 1997), implicando em desconsiderar entendimentos de que as pessoas não evoluem, mas sim como agiriam transformando os ambientes, “a natureza”, como também sendo por ela e tudo o que fosse ou não humano transformado, também. Se para melhor ou pior, sempre dependerá dos referenciais e valores em jogo (Ingold, 2006). Não esqueçamos, ainda, que as definições de humanidade e suas diferenças e semelhanças para a animalidade foram parte de processos históricos, envolvendo interesses e lutas de poder pelo domínio da classificação ambiental e dos critérios de entendimento do que e no que os homens seriam superiores e mais capazes de realizar do que os assim chamados animais-“outros” (Ingold, 1995).
Como antropólogos(as), consideramos elementos de ontologias as mais diversas, alteridades em contextos (Peirano, 2006), grosso modo entidades espirituais e elementos da natureza ganham sentidos outros sob mitologias e classificações que obedecem a diversidades cosmológicas (Viveiros de Castro, 2003; Lévi-Strauss, 2011). Conforme Mauss (2003) e Lévi-Strauss (1975) já demonstraram, e visto pelos(as) mesmos(as) alunos(as) em Antropologia 3, nossos corpos não são “puros” ou “naturais”, nem biologicamente definidos. Existimos paradoxalmente por meio de ecossistemas, lidando com outras pessoas, objetos, seres (não)vivos, estímulos, coletividades com e sem interfaces. As modificações e permanências em nossa maneira de ser vão ocorrendo dentro e fora de nossas opções, sejam elas por concepções de saúde e bem-estar, melhora de desempenho, cura mágico-religiosa, estética e estima de si. Antropólogos(as) e pesquisadores(as) de áreas próximas vêm produzindo, desde meados dos anos 80, análises críticas acerca dos impactos daquelas definições de vida e não vida nas relações com seres humanos, redefinindo questões e agendas, como, por exemplo, Haraway (2003), Tsing (1993), Overing (1986), Latour (1988), Horst e Miller (2006).
No caso desta turma de Antropologia 4, usei as discussões de Asad (2018), para reafirmar que cada referencial de existir possui caminhos e recepções para questionarmos processos de naturalização colonialista científica. Tais trajetos e leituras sempre envolvem relações de poder e dominação nos encontros de perfis coloniais, com claras assimetrias no acesso ao poder. E reforcei a necessidade de questionarmos as mesmas e os mecanismos historicamente constituídos por antropólogos(as) em suas pesquisas e publicações, devendo valorizar histórias locais, versões conflitantes produzidas em sincronias e diacronias, em entendimentos de tempo os mais distintos (Couceiro e Rosistolato, 2022b).
Se Asad criticou a perspectiva de autores britânicos até os anos 50 de entender cultura e sociedade como um suposto corolário existencial coerente e totalizante, lembrei à turma como Evans-Pritchard (1995) enfatizou as maneiras pelas quais nuer e dinka se compreendiam por meio da relação com o gado, o Rio Nilo e agricultura. E também como tais relações mediavam ações agressivas entre os homens e o entendimento da temporalidade em que viviam. Noutra obra sem tradução para o português, Evans-Pritchard observou tais situações ecossistêmicas vivenciadas em regras de alianças familiares, casamentos, e na produção social do parentesco entre os nuer (1951). As maneiras pelas quais se lida com situações ecologicamente hostis, envolvendo obtenção de nutrientes básicos e água, além de oscilações abruptas de temperatura em 24h e eficácia no deslocamento por meio da relação com camelos e dromedários também foi o centro de outro livro do mesmo autor, porém sobre os sanusi (Evans-Pritchard, 1949).
Proponho a perspectiva de se estudar situações de ensino-aprendizagem de ecossistemas pedagógicos, na medida em que engloba elementos de existência para além de se compreender que antropologia somente estudaria pessoas se relacionando com pessoas, e, no caso dos estudos educacionais, com sistemas burocráticos de regulação. Assim, o que busquei com as autoetnografias de caráter exploratório com a turma de Antropologia 4 era incentivar que os(as) discentes questionassem as vivências escolares pelas quais chegaram à UFMA, inserindo elementos dos ambientes mais amplos em que viveram e viviam. Deveriam ampliar a ideia de relação para além de seres humanos e englobar máquinas, como transportes no deslocamento escolar e universitário para ir e vir dos seus lares e trabalhos, passando pelas condições materiais para estudar, tanto mesas e cadeiras nos lares e nas salas de aulas, objetos que lhes estivessem à mão para (re)escreverem, (re)lerem e dialogarem por meio do letramento sequencialmente exercitado.
Os exercícios investigativos realizados reforçaram a necessidade de também se levar em consideração, a partir de formulações de Das (1995, 2011, 2020) acerca da produção social dos mecanismos de (res)significação de traumas e violências sofridas no plano ordinário, a perspectiva que chamo por pedagogias em ambientes hostis para a compreensão dos cenários educacionais expostos. Tal conceito auxilia no dimensionamento dos momentos em que discentes se depararam com enlaces propícios para retirarem-se do ambiente escolar. Assim, assumíamos na disciplina o compromisso de buscar entender as maneiras pelas quais discentes justificariam a continuidade dos estudos, reconhecendo a natureza das dificuldades a eles(as) impostas, conformando as justificativas morais sobre não terem renunciado ao curso de Ciências Sociais. Portanto, os(as) alunos(as) praticavam o entendimento de como captar e capturar as ideias dos textos, lembrando as informações que fornecia sobre as condições originais de sua produção por parte dos(as) autores(as) (Thornton, 1983, 1985). Escapávamos, então, da ótica de que as existências estudantis em ambientes pedagógicos hostis versassem necessariamente como destino inescapável fechado em si mesmo. Minha questão é, desta feita, averiguar quais as condições ecossistêmicas pedagógicas reveladas pelos(as) estudantes, em contextos de assinaladas precariedades existenciais, não fossem obstáculos impeditivos para buscarem a entrada e permanência na universidade? Contudo, busco tal reflexão por meio das compreensões dos entendimentos coletivos dos textos lecionados em Antropologia 4, realçando o redimensionamento do protagonismo dos(as) alunos(as) na elaboração das explicações sobre suas escolhas e trajetórias educacionais.
A turma entregou os primeiros trabalhos com as questões a serem investigadas, todas elas revelando que ingressar em uma universidade pública federal lhe abriria caminhos de empregos melhores, dentro das condições legais formais. Além disso, como tiveram aulas de sociologia na escola, mesmo que em situações de precariedade pedagógica, avaliaram que poderiam cursar Ciências Sociais e compreender o mundo em que viviam, e que várias horas não entendiam. Escreveram sobre injustiças estruturais e histórias. Quatro alunas haviam trabalhado como empregadas domésticas, termo usado por elas relembrando o período da escravidão oficial no Brasil, ou seja, ser considerada um ser inferior e domesticado por superiores, que lhes dariam trabalho, e não emprego, como se fosse um favor civilizacional. Lembraram dos argumentos sobre o conceito de cultura visto por nós em Antropologia 1, disciplina que tive a chance de lhes ensinar, fundamentalmente quando ocorre o rompimento com entendimentos neodarwinistas do termo e a ruptura promovida por F. Boas e seus orientandos mais famosos (Stocking Jr., 1992; Mintz, 2010). Enunciaram que as leituras coletivas estavam ajudando a identificar na vida dos colegas situações que não entendiam como sendo estabelecidas por meios mais amplos, por mecanismos estruturais de dominação de classe e da desigual distribuição de renda. E exercitar a escrita sobre si e de si era algo que ainda não haviam realizado no curso, algo que de longe haviam ouvido falar sobre reflexividade ou antropologia reflexiva, mas jamais haviam compreendido nada sobre do que se tratasse.
De todos os textos que abordamos nas aulas, aos que a turma mais se dedicou foram os de Ingold, na medida em que ao mesmo tempo em que eles orientavam importantes tópicos para a produção de críticas internas à antropologia, convidavam os(as) alunos(as) a avaliar os modos pelos quais aprendemos. Antes de continuar, é necessário destacar que as apropriações dos textos deste autor realizadas pela turma ocorreram na construção pedagógica de pontos de vista críticos, cometendo enganos necessários ao processo, que estava sendo devidamente orientada por mim enquanto professor. É digno de nota que Ingold não aborda questões sobre desigualdades sociais e estruturais em seus estudos sobre educação e ensino de antropologia, nem quaisquer tipos de conflitos e disputas políticas no desenvolvimento de sua agenda de pesquisas sobre sentidos da vida (Schweig, 2023). Ou seja, as leituras dos(as) alunos(as) levaram os textos para a compreensão de aspectos de sua existência, justificando temas que lhes eram caros, mesmo que fora de sua abordagem.
Ingold (2000) argumenta sobre a necessidade de modificarmos, na antropologia, a compreensão acerca dos modos pelos quais as pessoas são ambientalmente constituídas, recuperando elementos levantados por Bateson (2000) acerca das operações cerebrais. Se somos extensões de conexões de entendimentos, sem separações rígidas entre o dentro do corpo humano e o fora do mesmo, viveríamos como organismos em ambientes, e a partir de suas condições. Esse perfil de consideração, que levou Bateson (2000) a ajudar nos estudos sobre esquizofrenia, na comunicação entre humanos e golfinhos e baleias Orca, além da cibernética, é enfatizada por Ingold para estudarmos as propriedades das coisas e não elas em si mesmas.
Uma aluna captou esta proposição através do relato de sua saga de uma vila de trabalhadores rurais longe da capital para a casa de um casal de tios, em um bairro pobre vítima de violentos e contantes assédios policiais. Havia da parte dela experiencia em lidar com instrumentos de trabalho nas plantações, e resistir ao sol escaldante do raiar do dia até a última linha de luz. Ao mesmo tempo, passou a frequentar escolas rurais, e se acostumar com lápis, papel, borracha e caneta, além de informações por meio de letramento. Narrou a dificuldade em manusear diferentes objetos para objetivos distintos, e as coisas melhoraram quando ela construiu o entendimento de que na escola estava se esforçando para sair do trabalho que não lhe rendesse nada além de cansaço e doenças. Enfatizou que concluir os estudos e entrar para o que aos poucos as professoras lhe explicavam o que seria a universidade foi se tornando uma espécie de caminho único, salvação, de um destino péssimo igual ao de seus pais e avós, tios e irmãos, mesmo sem ter garantias se conseguiria se formar e com o que iria trabalhar. Ao invés de ir para a casa de famílias ricas ser explorada e abusada como doméstica, teve a sorte de ser enviada para a casa dos tios que já haviam imigrado fazia mais de dez anos para a capital. Ele trabalhava como motorista de ônibus e ela como cozinheira em restaurante na orla. Ambos dentro da legalidade, com direitos trabalhistas respeitados.
Havia mais cinco trabalhos de alunas em condição semelhante. Duas moraram com parentes estabelecidos na cidade, com empregos fixos que demandavam estudo técnico e cursos especializados. Os homens eram mecânicos, um deles chefe do setor de uma concessionária da Ford, e o outro, depois de oito anos na oficina de uma loja da Jeep, abriu a sua própria. Nela, consertava carros de alto padrão econômico, com auxílio do filho autodidata em (re)programação dos complexos softwares dos veículos. As outras três tiveram passagens, trabalhos em situação legal precária, como empregadas domésticas e cuidadoras de crianças e idosos em casas de famílias ricas da capital antes de conseguirem colegas de outros cursos da universidade com as quais passaram a dividir pequenos apartamentos em setores decadentes e, por isso mesmo, desvalorizados do Centro Histórico.
O bairro fica a 2km de distância do campus da UFMA, com fácil acesso por ônibus público, carros e motos que fazem serviços de transportes alternativos cobrando tarifas a preços populares. Em 1974, o lugar foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), órgão do governo federal que garante a preservação e as condições adequadas de divulgação e uso público de bens (i)materiais tecnicamente considerados fundamentais para a memória do país. Em 1997, foi declarado Patrimônio Mundial pela UNESCO. Seus mais de três mil imóveis de características arquitetônicas de finais do século XVIII e início do XIX oferecem os motivos de tal conquista aparente para os cidadãos: sobrados, casas de um pavimento e solares de taipa revestidos com azulejos de múltiplas cores e formas, telhados portentosos e venezianas. Digo aparente na medida em que sua preservação, maneiras de habitar e ocupar e negociação comercial envolvem complexas operações judiciais e arquitetônicas especializadas, além de mão de obra de adequada expertise, ligada a delicadas intervenções de engenharia civil e serviços afins. Em níveis de conservação distintos, os imóveis tombados mais precários são alugados a preços acessíveis para estudantes da UFMA, da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) e de faculdades particulares de menor porte, na medida em que muitos são migrantes de cidades do interior do Maranhão e de estados vizinhos, principalmente. Suas famílias enviam dinheiro para manter os(as) discentes, que completam a renda com trabalhos informais e bolsas de pesquisa de órgãos públicos de fomento, e, raramente, empresas privadas.
Os espaços de moradia eram um corte em relação aos lugares em que essas discentes haviam vivido até completarem o ensino médio. Assumiam a casa como ambiente de resiliência ocupado tendo como objetivo morarem em unidades habitacionais menos, ou, sequer, insalubres. Reconheciam a importância do comércio popular do bairro, serviços médicos, burocráticos estatais e técnicos a preços adequados ao seu orçamento, relativa segurança em horários diversos, e a adquirida familiaridade entre moradores que viviam por ali com justificativas diversas para sua situação de precariedade - como, por exemplo, pessoas que desejavam viver sua sexualidade e seu erotismo de maneira plena, fugindo de violentas censuras e perseguições morais familiares. Boa parte do bairro fica à beira do mar, que possui considerável oscilação de maré, chegando a sete metros na cheia. Argumentaram, também, que, por ter sido construindo na parte alta da cidade, as águas das fortes chuvas do chamado inverno rapidamente escoam para o oceano. Tudo isso permite que a quentura conviva com ventos que refrescam as casas, através de janelas de mais de três metros de altura e largura. As alunas pontuaram a beleza do lugar, principalmente no pôr-do-sol e noites de lua, como algo fundamental na manutenção do ânimo para superar as dificuldades da vida estudantil.
A leitura que continuaram a realizar de Ingold (2012) fazia menção aos modos pelos quais constituíam sua relação com os habitantes do bairro, os prédios, cheiros, gostos, as ruas, as cores das diferentes horas do dia e da noite, os sons, animais dos mais diversos perfis, principalmente carros e gatos criados coletivamente, mas também insetos e passarinhos. Começaram a refletir sobre os agenciamentos naquilo que o autor chama de ecologia da vida, isto é, com o engajamento das pessoas ativamente acionadas na permanente percepção do ambiente de existência (Ingold, 2010). Não se entendiam como seres passivos recebendo estímulos e informações a serem processadas e respondidas. Suas ações e percepções estariam envolvidas conjuntamente, influenciando a gestão do tempo, dos afetos e da logística para estudarem, dentro e fora do ambiente universitário. Desenvolveram habilidades para isso, convivendo nesses espaços com pessoas em situação semelhante, mas com particularidades nas histórias de vida, nos modos de viver. Os termos pelos quais deveria gerir conflitos, até mesmo percebê-los em níveis de gravidade para sua tranquilidade para estudar, fazia parte do que Ingold (2010) chama de modo pelo qual as pessoas estão situadas no ambiente.
Os demais trabalhos ofereceram esse olhar de que a educação ocorre segundo pedagogias abertas dos sentidos, seus usos em situações e cenários inéditos. Conviver com parentes até outrora desconhecidos ou pouco conhecidos, viver nas regras de suas casas, obedecendo seus horários, sabendo que poderiam ser “devolvidas” aos seus pais nas cidades do interior do estado, exigiam desgastantes investimentos pessoais das alunas em desenvolverem uma (re)educação sensorial. Essas estudantes não entendiam que eram capturadas por um sistema de comunicação pronto e eficaz, e nele deveriam passar a operar. As relações, incluindo as ações paradoxais e os mal entendidos, são vividas em processos de amadurecimento dos sentidos ambientalmente agenciados em (re)descobertas orientadas de si. Isso quer dizer que as pessoas mais estabelecidas nos ambientes vividos mostram caminhos de entendimento e de experimentação aos mais jovens no lugar, criam situações de aprendizado de usos dos sentidos, fora de esquemas prévios. Esse ponto esteve presente em todos os trabalhos, conectando professores e pessoas importantes nos ambientes residenciais, nos quais poderiam ou não ter, inclusive, mobiliário adequado para diminuir as condições hostis de vivências estudantis.
Muito embora Ingold tenha se detido por alguns anos na perspectiva do habitar sensorial, ele também produziu reflexões sobre a ideia de caminhar como modo de perceber a constituição de experiências educacionais no sentido mais amplo do termo, ou seja, sobre modos de existir sempre inacabados (Ingold, 2015). Noutro texto trabalhado na disciplina, os(as) alunos(as) puderam identificar essa outra faceta de Ingold (2015) realizando o que ele chama por antropologia imersa na vida. Noves fora as considerações filosóficas postas no artigo, complexas para todos os envolvidos nas leituras coletivas, inclusive para mim, caberia à antropologia questionar a ideia de que o ser humano e a vida seriam objetos opacos e fechados a serem investigados. Sua proposta envolve a memória da profissão do pai, por ele presenciada, um pesquisador dos fungos, ou seja, de algo sem início e fim determináveis. Algo que ainda por cima vaza, literalmente, assume novas formas de acordo com as condições ambientais nas quais existam.
Desta forma, a turma se envolveu com a noção de criatividade do autor, abordando suas experiências na vida universitária como algo repleto de adaptações criativas para lidarem com ambientes que lhes apresentavam novidades. Os perfis de vida no universo urbano da capital eram desafiadores, exigindo rapidez na resolução de questões das mais básicas, como falta de água e combate a mosquitos, por exemplo. Os da vida universitária não ficavam de lado, posto que deveriam cumprir com burocracias, digitais e presenciais distintas das da vida escolar, bem como lidarem com leituras de volume de páginas maior do que estavam acostumados(as). Quem tinha filhos, caso de três alunos que moravam com suas companheiras, deveria lidar com a engenharia familiar e suas vicissitudes. As crianças estavam em idade escolar, e vez por outra esses pais pediam licença para que eu deixasse levá-los para as aulas, única maneira de nelas poderem estar. Eu aceitava, com certa pena dos moleques de escutarem tantas coisas desinteressantes e sem sentido para sua idade.
E, assim, a turma entendeu na prática porque nesse outro artigo Ingold (2015) insiste na importância de estudarmos os jeitos de nos educarmos por meio dos usos contínuos dos sentidos em ambientes estendidos através da improvisação. Combinar materiais num fluxo constante de objetivos a serem atingidos é o foco do autor, afirmando que vivemos com e através de objetos num emaranhado de linhas, ao longo delas, e não fechadas em redes, sistemas, estruturas e esquemas de comunicação, ética, moralidades, papéis, significação, parentesco e algo do tipo. Os(as) alunos(as) mostraram nas autoetnografias exploratórias como a produção das existências estudantis podem e devem ser compreendidas em ecossistemas pedagógicos. Também apresentaram, de maneira criativa, como situações outras podem dar lugar, não com pouco sofrimento e resiliência, a situações de hostilidade educacional. O habitar é um engajamento perceptivo direto e em emaranhado de linhas percorridas sem manual, sem GPS, com o mundo-ambiente. As pessoas nele se envolvem continuamente com e por meio de elementos humanos e não-humanos, agenciamento soluções para questões produzidas nas experiências sensoriais e nas ideias a partir deles gestadas.
Os ecossistemas pedagógicos apareceram em sentido experimentado por comparação, na experiência etnográfica dos processos de ensino e aprendizagem com a turma de Antropologia 4. Os usos pragmáticos dos textos lecionados mostraram-se centrais na manifestação dos modos de envolvimento com o que vivíamos pedagogicamente, fornecendo elementos para (re)leituras das vivências escolares dos(as) alunos(as). Os ambientes educacionais foram reconhecidos por essas pessoas como sendo hostis para seguirem com tentativas de rompimento de destinos entendidos como sendo ruins pata suas existências, porque os sofrimentos e violências dos pais e avós persistiriam ao redor da vida dos trabalhos agrícolas para tradicionais famílias latifundiárias.
As aulas foram movimentos coletivos e pessoais abertos, com a falas sobre si através da compreensão dos textos recomendados e a escrita das autoetnografias exploratórias em permanente interface. Os ambientes hostis eram revisitados, sofrimentos narrados em observações sobre em que termos e quais condições os(as) alunos(as) haviam chegado até ali, o almejado ensino superior em uma universidade pública federal. Estar na capital completava o novelo de caminhos a serem perseguidos nos agenciamentos do habitar a universidade e o bairro em que parte significativa da turma morava, o que busquei definir por ecossistema pedagógico. A costura dos ambientes de composição ativa do mesmo foi sendo feita a partir das aulas, e não somente nas mesmas, por meio do contínuo trabalho de encorajamento dos usos da antropologia para que interesses dos(as) alunos(os) fossem acessados, transformados em questões e explorados no exercício proposto.
As pessoas ativamente se apropriaram de suas trajetórias educacionais, sem narrativas prontas, fechadas, acabadas. Elas conectaram ambientes pedagógicos a outros que outrora passavam incólumes sobre sua influência nos estudos, nas condições de possibilidade para comporem a compreensão dos modos de existir de maneira satisfatória para si, nas situações embebidas nas ecologias de ensino-aprendizagem. Lidaram com suas heranças educacionais (Bourdieu, 2012), e suas devidas e não menos sofridas contradições, se havendo com o campo de possibilidades para explicarem o que conseguiram fazer com e a partir das mesmas. Trazendo as coisas à vida (Ingold, 2012), os exercícios implicaram as pessoas como estudantes a se situarem ao mesmo tempo em que compunham seus mapas de significação, produzindo sentidos das opções assumidas dentro das variáveis apresentadas e das condições objetivas do leque de escolhas.
O presente artigo é fruto de conversas com importantes interlocutores(as), a quem devo meus sinceros agradecimentos pela generosidade intelectual: Rejane Valvano, Rodrigo Rosistolato, Amurabi Oliveira e Guillermo Sanabria. Os(as) pareceristas anônimos colaboraram enormemente para o refinamento da versão final do artigo, bem como ampliaram horizontes para o desenvolvimento aprofundado de argumentos nele presentes em textos ainda em andamento. Fica aqui registrado meu muito obrigado. Aos editores do dossiê, Maximiliano Rúa e Laura Cerletti, além do rico diálogo constante, parabenizo pela organização do mesmo e pelo respeito, profissionalismo, pela rapidez e simpatia na condução de todas as etapas do trabalho. Sou grato à revisora do artigo por ter ajudado a melhorar a versão final do texto.
Rúa, M. (2021). Entre el aprendizaje como práctica y la práctica como aprendizaje: Vygotsky, Gramsci y los procesos de construcción de conocimiento en la “microclase”. En M. Moya y M. Rúa (Comps.), El aprendizaje de la “práctica” en la Universidad (303-328). Buenos Aires: Editorial de la Facultad de Filosofía y Letras.
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Vega Sanabria, G. y Duarte, L. F. D. (2020). O ensino de Antropologia e a formação de antropólogos no Brasil hoje: de tema primordial a campo (possível) de pesquisa (antropológica). En I. J. de R. Machado, S. Fleischer, D. L. O. Montardo y J. Cavignac (Orgs.), Ciências sociais hoje. Antropologia, vol. 1 (pp. 160-190). São Paulo: BIB/Anpocs.